Feminismo, alimentação e privilégios

Texto da Equipe de Coordenação das Blogueiras Feministas.

Quando falamos sobre privilégios as pessoas geralmente se colocam na defensiva. Não queremos ser identificadas com algo que consideramos opressor. Porém, numa sociedade desigual como a nossa é importante reconhecer os privilégios presentes em nossas falas e ações, especialmente em relação aos discursos que dizem como devemos ser ou agir, o que é certo ou errado. Atualmente, a alimentação tem sido um tópico muito debatido. E o que isso tem a ver com feminismo? Ora, as mulheres ainda são em grande parte responsáveis pela alimentação das pessoas, seja cozinhando em casa, no comércio ou como empregadas domésticas, seja sendo a responsável pela compra dos alimentos da família. Então, grande parte do discurso do que deve-se comer ou não, do que deve ser comprado ou não, do que é considerado saudável para crianças ou não, é dirigido às mulheres.

Cena de reportagem sobre alimentação no programa Globo Repórter da Rede Globo.
A cozinheira Valquíria Melo de Oliveira que tem um pequeno restaurante em Rosário do Catete, interior de Sergipe. Cena de reportagem sobre alimentação no programa Globo Repórter da Rede Globo. Maio/2014.

Atualmente, é comum vermos pipocar na internet diversos textos mostrando como é mais barato comer alimentos orgânicos que não-orgânicos. Ao deixar de comprar enlatados, congelados e outras comidas muito processadas pela indústria e passar a comprar vegetais, legumes e frutas orgânicas a conta do supermercado fica mais barata segundo esse discurso que é usado como um exemplo de vida a ser seguido. Porém, quem pode fazer essa escolha? Há um recorte social de classe importante que amplia ou restringe nossas opções de alimentação, há influências diretas do contexto em que vivemos que afetam diretamente nossa alimentação. E uma questão importante: por que acreditamos que apenas o orgânico pode ser saudável?

Para quem mora em grandes capitais no Brasil, o tempo acaba sendo um fator de privilégio. Com engarrafamentos, longas distâncias entre casa e trabalho, responsabilidades diárias com a família é preciso tempo para adquirir e preparar um alimento orgânico. Pode-se tirar um período do fim de semana para isso, como muitas pessoas fazem. Há sempre possibilidades, mas até que ponto quem ficou fora de casa durante 12, 14 horas diariamente de segunda a sexta vai ter disposição para se dedicar a cozinhar no fim de semana? “Mas é em nome da saúde”, tantos dizem. Por que a saúde precisa ser um valor absoluto? As pessoas não podem optar pelo que é cômodo, lúdico ou fácil?

Existe uma miríade de nuances que quem vê o prato de comida saudável pronto e o discurso que é financeiramente compensador deveria ponderar. Um prato de comida cozinhada em casa exige que haja alguém que a cozinhe. Isso é bem óbvio, quem é que fica encarregado desse serviço? Esse é o primeiro recorte. Se não há alguém contratado para fazer isso, no geral fica em casa a pessoa cuja renda seja menor ou inexistente, fica em casa quem tem como se sustentar sem passar muito tempo fora de casa. Existem pessoas que tem essa condição, gostam de cozinhar e dispõem seu tempo para isso. Existem outras, que tem como ficar em casa mas não tem disposição para cozinhar. Existem outras que não tem como ficar em casa para cozinhar e nem tem quem cozinhe para elas. E tem as que cozinham nos fins de semana e congelam tudo para servir as porções durante semanas. Esse é um trabalhão. Fazer toda comida de uma semana ou de duas semanas dependendo do tamanho do seu freezer — e é preciso também colocar um freezer na conta —  é uma empreitada que poucas pessoas encaram sozinhas.

Então, há limites nas ações individuais. Por mais que comer menos comida processada seja bom para a saúde, não para ficar magro, não para fazer dieta, e sim para comer menos açúcar refinado, menos sal, gorduras e outros elementos químicos que as comidas processadas industrialmente contém aos montes, é preciso questionar porque as pessoas não tem mais tempo para cozinhar e não simplesmente mandá-las arrumar esse tempo. A indústria de alimentos alega contribuir para que as pessoas não passem fome mas o processamento de alimentos nos faz perder a conexão com o que ingerimos, porque só vemos o produto, não o processo. Portanto, é preciso questionar como a produção de alimentos é feita, quais seus objetivos, seus níveis de lucros atuais, como se dá o uso de agrotóxicos e quais as consequências de suas ações, não apenas na saúde das pessoas, mas também na questão da manipulação dos animais e no esgotamento de recursos do planeta, por exemplo. Ter uma horta no quintal é ótimo para mim, mas não promove mudanças na alimentação da pessoa que mora no bairro do outro lado da linha do trem. O ar que respiro não será mais puro apenas no meu quintal.

Outro recorte é o geográfico. Existem movimentos como o slow food que ganham força no mundo inteiro. Em algumas partes das cidades e/ou do país o acesso a produtos de boa qualidade e orgânicos não é assim tão fácil. Não chega a ser impossível mas, demanda tempo, disposição e dinheiro. Afinal, a gente não se desloca facilmente carregando uma feira debaixo do braço se vai depender de transporte público, não é mesmo? Além disso, tem a frequência com que a pessoa tem que ir ao mercado quando quer consumir produtos frescos. Esses são empecilhos considerando o modo de vida que a classe trabalhadora tem em nosso país. Portanto, mais do que julgar quem tem ou não vontade de se envolver e mudar a alimentação, nos parece mais importante romper esse ciclo poderoso que é o da industria alimentícia, um dos pilares do sistema no qual a sociedade capitalista em que vivemos inseridos se sustenta. Mas também não podemos dizer que é um passo que todas as pessoas tem condição de dar da mesma maneira e com a mesma intensidade. Por causa das diferenças de modo de vida entre as pessoas, sejam da mesma ou de diferentes classes sociais.

Ter uma alimentação saudável que confronte o sistema de produção industrial de alimentos é um ato político, mas também representa um privilégio, porque nem todo mundo tem essa possibilidade. Condenar quem dá biscoito recheado pros filhos nos ajuda em quê? Condenar quem dá apenas frutas orgânicas para o lanche dos filhos nos ajuda em quê? Acreditamos que o debate precisa ir além e focar na responsabilidade das empresas que produzem e comercializam alimentos industrializados para lanches infantis. No discurso gordofóbico de que só é saudável quem é magro e come alimentos específicos. No discurso restritivo do que é saudável e do que não é. E, também, na maneira como tratamos as crianças, sempre considerando que podemos até achar que sabemos o que é melhor para elas, mas tendo em vista que não há garantias de nada. Uma pessoa adulta que come de modo saudável não significa uma pessoa melhor, menos preconceituosa, mais solidária.

Outro fator a ser analisado é a cultura. Quando se apresenta a lancheira de uma criança apenas com alimentos orgânicos, as pessoas respondem com horror diante da ausência de doces ou do que é considerado gostoso. Isso acontece porque comida envolve também sentimentos. A maneira como nos relacionamos com a comida está povoada de sensações, boas e ruins, lembranças e conexões sinestésicas. Além disso, mostra como o açúcar é importante na nossa cultura, talvez pelo Brasil ter sido grande produtor ou talvez pela herança portuguesa, porque em outras culturas o açúcar não é tão endeusado assim.

Porém, fica outra pergunta: com quem os vários de programas de televisão — tanto na tv aberta como nos canais a cabo — estão falando quando o assunto é comida saudável? É possível para uma pessoa que viva no Brasil com dois salários mínimos ou menos ter uma boa variedade de frutas e legumes em casa? Um pacote de macarrão rende certamente muito mais que um pé de brócolis, couve ou mesmo uma alface. O que irá satisfazer mais as pessoas? O que as fará se sentirem bem alimentadas? Como ativistas, comer menos comida processada deveria ser uma das nossa bandeiras. Muitas ações da produção de alimentos industrial são responsáveis pelo desmatamento do meio ambiente, pela destruição do solo e mananciais, além de promover a monocultura do agronegócio. A água que a indústria usa para produzir o refrigerante é a mesma que deixa de aparecer em nossas torneiras. Portanto, não devemos responsabilizar apenas as pessoas, individualmente, pelas mudanças significativas que pleiteamos.

Devido ao tamanho do Brasil é possível encontrar inúmeras diferenças regionais marcantes na alimentação das pessoas. A batata doce, por exemplo, que está na moda fitness atual, durante muito tempo foi considerada comida de pessoas pobres em algumas regiões. As feiras e pequenos comércios que vendem alimentos produzidos em pequenas propriedades eram vistas como opções apenas para famílias de baixa renda desde a criação dos grandes supermercados. É preciso cobrar também mais políticas públicas de investimento em agricultura familiar e pequenas propriedades. Propor novas maneiras do pequeno produtor não ser obrigado a se endividar para plantar ou ser obrigado a utilizar agrotóxicos porque todas as sementes disponíveis são transgênicas. Pensar em como reduzir o desperdício e utilizar totalmente os alimentos.

Há iniciativas importantes como a do Movimento Sem Terra que questiona essas relações e vende produtos cultivados por famílias e cooperativas, em assentamentos por todo o país, sem o uso de agrotóxicos. Há os restaurantes populares com seus cardápios variados, respeitando a cultura alimentícia local e elaborados por nutricionistas. Há opções mais coletivas e que garantem acesso a mais pessoas, precisamos divulgá-las.

O que colocamos na panela tem relação direta com muito mais do que uma simples escolha entre ser saudável ou não. É preciso pensar em alternativas, divulgar mais ações que estão sendo desenvolvidas na agroecologia e nos sistemas agroflorestais. Os circuitos de feiras orgânicas tem crescido, mas é importante pensar no transporte, nas distâncias que ainda são percorridas apenas por estradas, gerando poluíção, fazendo com que o uso de produtos químicos seja necessário para preservar os alimentos. A saúde e subsistência dos trabalhadores do campo também precisa ser observada, ampliando os meios de comercialização, aproximando produtores e consumidores e reduzindo distâncias e custos na distribuição dos alimentos. Além disso, precisamos pensar: o que é ser saudável? O que é saudável para uma pessoa é para todas as outras? A conta da saúde não pode vir apenas para o indivíduo, especialmente as mulheres.