Sororidade seletiva: travestis, transexuais e os limites da categoria mulher

Texto de Vanessa Sander para as Blogueiras Feministas.

Preciso dizer que, já há algum tempo, venho reparando um certo crescimento de discursos transfóbicos dentro dos espaços feministas (online e offline) nos quais circulo. E isso me incomoda, pra dizer o mínimo. As TERF’s(1) (como convencionou-se chamar as feministas contrárias a inclusão de pessoas trans) parecem ofendidas com o fato de que pessoas não designadas mulheres ao nascer possam posteriormente se identificar como tal. E elas satirizam tal identificação, tratando-a simplesmente como uma alucinação, uma escolha pessoal (num sentido individualista) sem maiores consequências, descolada de qualquer contexto. Vejo o “construcionismo caindo nas emanações radiantes do cinismo”, como diz Donna Haraway.

Quando ressalto que todo gênero é desde sempre uma forma de construção profundamente real, para pessoas cis ou trans, as TERF’s perguntam: “ah! então o que é ser mulher”?

Muitas até admitem: ‘ter buceta’ não determina o ser mulher. O que determina é a socialização que recebemos enquanto seres nascidos com ‘buceta’. Desloca-se o determinismo biológico para o social. Trata-se a tal ~socialização~ como uma entidade metafísica, sem nuances, sem diferenças, pouco sujeita às contingencialidades, universal, e com a qual nos relacionamos sem nenhuma possibilidade de reflexão e resistência.

Foto de Ana Carolina Fernandes. Parte do projeto fotográfico "Mem de Sá, 100”, que traz cenas de travestis da Lapa (RJ) em contextos de intimidade.
Foto de Ana Carolina Fernandes. Parte do projeto fotográfico “Mem de Sá, 100”, que traz cenas de travestis da Lapa (RJ) em contextos de intimidade.

É aquela velha história: só porque percebemos que as convenções de gênero tem um caráter ficcional não significa que elas são falsas. As construções de gênero não deixam de ser reais porque são construídas, no entanto, é importante que a gente reconheça a incompletude dessas construções, como elas se dão de maneira distinta em cada contexto, e como estão articuladas a outros regimes regulatórios e marcadores sociais da diferença, como raça, classe e sexualidade.

A categoria mulher está (e sempre esteve) em disputa e problematização dentro do feminismo, e ele ganhou muito com isso. Lembro do icônico e emocionante discurso de Sojouner Truth, mulher negra e conhecida oradora abolicionista, que perguntava: “E não sou uma mulher?”. As mulheres negras denunciaram (e ainda denunciam) sua invisibilidade dentro dos discursos e movimentos feministas, mostrando como as reivindicações pautadas pela categoria “mulher” se pretendiam universais mas, na verdade, tinham muitas limitações e um centramento nas experiências de mulheres brancas e euroamericanas. Quando, por exemplo, as feministas falavam das dificuldades das mulheres quando “passaram a trabalhar fora” não se levava em conta as vivências das mulheres negras, que sempre trabalharam fora, e nos empregos mais precários. Esses questionamentos agregaram muito ao feminismo, enquanto teoria e prática política, e trouxeram novos deslocamentos na categoria “mulher”.

Com as mulheres transexuais e travestis acontece um processo parecido: elas trazem novos debates e experiências que nos fazem repensar o que afinal de contas é ser uma mulher, e reconhecer a pluralidade de contextos e vivências que colocamos sob essa categoria.

Por isso, acredito que temos de enfrentar a suposição que o termo “mulheres” denote experiências universais. “O que nos separa não são as nossas diferenças, e sim a resistência em reconhecer essas diferenças e enfrentar as distorções que resultam de ignorá-las e mal interpretá-las”, diz Audre Lorde. Reconhecer a complexidade, as desigualdades e ambiguidades não tira forças da nossa luta, pelo contrário, isso amplia nosso espaço de contato e nos faz ter uma relação mais sincera com nosso lugar de fala.

Pessoalmente, não gosto, e acho um tanto patriarcal, dessa definição de mulher descrita pela falta, centrada no sofrimento, no silenciamento, na violência doméstica ou no estupro. Não que essas coisas não aconteçam (e é muito importante falar sobre isso), mas acho um tanto problemático fazer disso uma essência. Há muita diversidade, resistência, força, luta cotidiana e criatividade que também deve-se celebrar. Muitas experiências distintas das minhas com as quais eu quero aprender. E se não é a ‘buceta’, mas essas experiências de violência que conferem um status legítimo a vivência do feminino então, infelizmente, as travestis e transexuais são demasiado mulheres, já que o silenciamento, a violência doméstica e sexual fazem parte de seus cotidianos de forma tão repetida, que chega a ser dolorosamente naturalizada. A cada vez que as TERF’s reificam a anedota alucinante de que uma trans irá invadir os banheiros femininos para estuprar mulheres, eu sinto um aperto no peito. Lembro de muitas histórias que ouvi durante meu trabalho de campo: de travestis estupradas mais de 20 vezes por dia em uma cela de cadeia, espancadas por namorados, abusadas por clientes, violadas por familiares logo quando começaram a transição.

Por isso dói tanto ver feministas chamando mulheres trans e travestis de “homens de saia”. O não-reconhecimento dessas pessoas e suas experiências, simplesmente por não se adequarem ao complexo normativo “vagina (original de fábrica)-mulher-feminino” é uma forma de violência e opressão que nós, mulheres cis, podemos sim realizar. É muito importante reconhecer isso.

Sempre termino pensando nessa citação da Butler: “seria a construção da categoria das mulheres como sujeito coerente e estável uma regulação e reificação inconsciente das relações de gênero? E não seria essa reificação precisamente o contrário dos objetivos feministas?” E imediatamente vem à minha memória uma fala da ativista Indianara Alves Siqueira: “eu não estou presa em um corpo de homem, estou presa nas concepções da sociedade sobre o que é ser um homem e uma mulher”.

Agora podem me chamar de “academicista”, “agrada macho”, “tá no time dos pirocos”, e outras coisas que já ouvi. Continuo achando que genitalização, falocentrismo e argumentos de natureza humana são coisa do patriarcado.

Referência

(1) A sigla significa: Trans Exclusionary Radical Feminist.

Autora

Vanessa Sander tem 25 anos, é feminista de Belo Horizonte (MG). Mestranda em Antropologia Social na UNICAMP.

+ Sobre o assunto:

[+] Por um feminismo trans: As lutas devem estar juntas. Por Helena Vieira na Revista Fórum.

[+] Desfazer o género e outras subversões. Entrevista com a filósofa Judith Butler.