O diálogo entre os estudos feministas e de gênero com o campo de estudos sobre deficiência

Trechos do artigo ‘Gênero e deficiência: interseções e perspectivas’ de Anahi Guedes de Mello e Adriano Henrique Nuernberg. Publicado na Revista Estudos Feministas. 2012, vol.20, n.3, pp.635-655. 

Os estudos sobre deficiência

Ao contrário dos Estudos Feministas e de Gênero, os Estudos sobre Deficiência são pouco conhecidos no país. Em realidade, o tema deficiência ganha no Brasil um enfoque predominantemente biomédico, sendo pouco contemplado nas Ciências Humanas e Sociais. Desse modo, julgamos ser necessário delinear algumas características desse campo, visando contextualizar o enfoque aqui proposto sobre a relação gênero e deficiência.

Os Estudos sobre Deficiência emergiram nos anos 1970 e 1980 em decorrência das lutas políticas, nos anos 1960 e 1970, das pessoas com deficiência nos Estados Unidos (Independent Living Movement), na Inglaterra (Union of the Physically Impaired against Segregation) e nos países nórdicos (Self-advocacy Movement, na Suécia), primeiro com uma perspectiva histórico-materialista e, após, desde o início dos anos 1990, com a contribuição da epistemologia feminista. Esse campo vem despontando como um sólido contexto acadêmico interdisciplinar que pretende refletir, em suas mais variadas vertentes, sobre o fenômeno da deficiência a partir do uso de metodologias e ferramentas analíticas próprias das Ciências Sociais. Vários são os programas de graduação e/ou pós-graduação que já esboçam essa proposta em muitos países, mas ainda não têm significativa presença nas Ciências Sociais brasileiras, permanecendo restrita a outras áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Educação e a Medicina.

No Brasil, a interface do feminismo com os Estudos sobre Deficiência tem sido feita de modo intenso e com amplo destaque nacional pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, sendo a primeira organização não governamental, sem fins lucrativos, voltada para a pesquisa, o assessoramento e a capacitação em Bioética na América Latina. Sediada em Brasília e com uma equipe permanente de profissionais de diferentes áreas, a Anis também desenvolve ações de capacitação e produção de conhecimento em torno das questões de bioética e deficiência, em parceria com o grupo de pesquisa Ética, Saúde e Desigualdade da Universidade de Brasília (UnB). Uma boa parte das referências nacionais aqui utilizadas é de autoria desse grupo, no qual participam pessoas de grande renome nacional, como a antropóloga Debora Diniz, pioneira na difusão do modelo social da deficiência no Brasil e da interface dessa questão com as teorias feministas por meio do livro O que é deficiência?, da editora Brasiliense, entre outras publicações referenciadas ao longo deste texto.

De modo geral, o modelo social da deficiência, em oposição ao paradigma biomédico, não se foca nas limitações funcionais oriundas de deficiência nem propõe a ideia tão comumente aceita da necessidade de reparação/reabilitação do corpo deficiente, mas sim a concebe como o resultado das interações pessoais, ambientais e sociais da pessoa com seu entorno. Nesse sentido, as experiências de opressão vivenciadas pelas pessoas com deficiência não estão na lesão corporal, mas na estrutura social incapaz de responder à diversidade, à variação corporal humana.

Mesmo diante dessa tensão entre natureza e cultura, o modelo social da deficiência promoveu a primeira guinada ao elevar as pessoas com deficiência ao status de sujeitos de direitos humanos e não reduzindo esse grupo social como mero objeto de intervenção clínica, de reabilitação ou de assistencialismo. O modelo social da deficiência é o pilar dos Estudos sobre Deficiência. Sua teoria configura-se, portanto, na crítica radical ao modelo médico, uma vez que esse está intimamente enraizado na “teoria da tragédia pessoal como a narrativa cultural dominante […]”.Entretanto, é importante ressaltar que o que se questiona no modelo social é a ideia de que a deficiência é somente um fato orgânico. Ou melhor, “em um ponto os modelos social e médico coincidiam: ambos concordavam que a lesão era um tema da alçada dos cuidados médicos”.

Os significados construídos em torno de gênero e deficiência devem ser compreendidos como a relação entre o corpo com impedimento e o poder, sendo frutos de disputas e/ou consensos entre os diversos saberes, e não algo dado, estático e natural. Na esteira desse argumento é que se resgatam os Estudos Feministas e de Gênero. Conforme aponta Diniz, a primeira geração dos Estudos sobre Deficiência era composta majoritariamente de homens com lesão medular, apontados pelas teóricas feministas como membros da elite dos deficientes e, portanto, reprodutores dos discursos dominantes de gênero e classe na sociedade. Com base nessa perspectiva feminista, nos anos 1990 e 2000 o modelo social da deficiência passa por uma nova revisão, constituindo a segunda geração de teóricos desse campo:

Foram as teóricas feministas que, pela primeira vez, mencionaram a importância do cuidado, falaram sobre a experiência do corpo doente, exigiram uma discussão sobre a dor e trouxeram os gravemente deficientes para o centro das discussões – aqueles que jamais serão independentes, produtivos ou capacitados à vida social, não importando quais ajustes arquitetônicos ou de transporte sejam feitos. Foram as feministas que introduziram a questão das crianças deficientes, das restrições intelectuais e, o mais revolucionário e estrategicamente esquecido pelos teóricos do modelo social, o papel das cuidadoras dos deficientes. Foi o feminismo quem levantou a bandeira da subjetividade na experiência do corpo lesado, o significado da transcendência do corpo para a experiência da dor, forçando uma discussão não apenas sobre a deficiência, mas sobre o que significa viver em um corpo doente ou lesado.

É essa abordagem feminista que interessa aos propósitos deste trabalho. A manifestação de uma deficiência evidencia essa possibilidade de transformação social, de transcendência do sujeito aos seus limites corporais. Trata-se, conforme prenuncia o título de um livro de Vasconcelos,do “poder que brota da dor e da opressão”.

Nesse sentido, o impacto causado pelos Estudos Culturais e pelas teorias feministas, queer e pós-modernas também se refletiu nos Estudos sobre Deficiência, especialmente em relação às discussões teóricas sobre os modelos da deficiência e à deficiência como uma condição de vulnerabilidade para a violência de gênero. Trabalhos de feministas merecem destaque tanto por problematizarem, implícita ou explicitamente, a relação entre deficiência e gênero quanto por apontarem para uma total falta de preocupação dos movimentos feministas com a questão da deficiência; e dos movimentos de pessoas com deficiência em relação à importância de outras categorias identitárias, em especial a de gênero, igualmente significativas para a formação da identidade das pessoas com deficiência. Tomando o exemplo do trabalho de Ferri e Gregg,as mulheres com deficiência têm sido historicamente negligenciadas por esses dois movimentos:

The status of women with disabilities underscores their dual silence and oppression. The dual silence of women with disabilities is evidenced by a lack of a disability perspective in feminist theory and practice, and a failure of the disability rights movement to analyze how gender impacts on disability.

Para essas teóricas feministas, as mulheres com deficiência estão em dupla desvantagem devido a uma complexa combinação de discriminação baseada em gênero e deficiência. Consequentemente, enfrentam uma situação peculiar de dupla vulnerabilidade, que se torna ainda mais complexa a partir da incorporação das categorias de raça/etnia, classe, orientação sexual, geração, região e religião.

As lutas dos movimentos sociais de pessoas com deficiência guardam um ponto em comum com os movimentos feministas e de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTTTI), que é o de questionar o construto do corpo como um dado natural que antecede a construção dos sujeitos. Portanto, da mesma forma como ocorreu com os Estudos Feministas e de Gênero em relação às histórias de lutas do feminismo, não se pode tratar dos Estudos sobre Deficiência sem recorrermos à história dos movimentos da deficiência. Foram os ativistas com deficiência os principais responsáveis pela construção e pela consolidação dos Estudos sobre Deficiência como um projeto político-acadêmico.

Interfaces conceituais entre os dois campos

Do ponto de vista conceitual é possível identificar alguns eixos importantes de articulação entre os campos dos Estudos Feministas e de Gênero e os Estudos sobre Deficiência: 1) o pressuposto da desnaturalização do corpo; 2) a dimensão identitária do corpo; e 3) a ética feminista da deficiência e do cuidado.

A respeito do primeiro pressuposto teórico, pode-se dizer que os Estudos Feministas e de Gênero têm se tornado uma ferramenta conceitual importante para a radicalização do argumento da construção social da deficiência, compreendida a partir desse campo como uma narrativa produzida socialmente sobre determinadas variações corporais. Rosemarie Garland-Thomson é uma das mais expressivas autoras feministas responsáveis pela defesa dessa ideia. Em relação ao segundo pressuposto, consideramos que a deficiência também pode ser pensada na perspectiva da genealogia do sujeito moderno-contemporâneo, da centralidade do corpo deficiente como idioma simbólico e político, da identidade e seu impacto na subjetividade da pessoa, concepção essa bastante cara à teoria feminista. Sobre o terceiro e último pressuposto, a matriz epistemológica feminista dos Estudos sobre Deficiência se destaca, sobretudo, pela frase provocativa de Eva Kittay, uma filósofa que se colocou na posição de cuidadora de uma filha com paralisia cerebral: “Todos somos filhos de uma mãe”. Ou seja, essa autora trouxe à tona o tema do cuidado para além de uma questão de gênero, também um princípio ético e moral da própria condição humana, desde o nosso nascimento até a morte.

Créditos da imagem: Dezembro/2015. Com soluções simples e criativas, bar dá exemplo de inclusão de deficientes na Itália. Erika Zidko/BBC Brasil.