Um: o quarto.
O silêncio na carona sela. A noite fora divertida até então. Éramos tristeza e tensão. Choro no portão. Eu forte, segurava lágrimas e gritos. Frustração. Foram-se embora. Sentei à beira da cama, o quarto arrumado do dia de faxina. Meu mundo desabava. Ele ali ao meu lado e eu incontrolável. Doía em mim. Nem sua voz, seu cheiro, seu abraço, nada me consolava. Era nojento demais. Escroto, o que havíamos vivido nas últimas poucas horas do dia. Mil idéias: como prevenir, como melhorar a vida das vítimas, como parar estupros e assédios, como combater uma cultura machista de que mulher não fala não, não pensa, é objeto, é só prazer. As vadias. Foi ao meu lado, sabe? Não vi. Não vimos. Ela chegou low profile e me contou, eu chocada, cheia de ódio. A amiga era mais importante que o agressor. Caralho, como escolher? Por que escolher? Eu dirigindo até o karaokê decandente do final da noite. Ela a duas quadras lutando para se desvencilhar do agressor. Agressor não é um louco tarado que a pegou na rua. É o amigo do amigo, o cara gente boa, tem namorada, conhecem-se eles desde a infância. O amigo chocado que não sabia mais a quem dar razão, não o culpo. Mas a razão era dela. A cara de pau era tão descarada, que ousou juntar-se ao grupo de novo. Fingia ser normal aquilo. Fingia não ser nada. Fingia que não era. Despediu-se e meu alívio foi muito. Eis que ela volta do banheiro correndo, pulando descalça pela pista de boliche, a maquiagem borrada e a humilhação ardente. Vejo ele correr atrás do corredor. Um ínterim de dúvida. Corro atrás dele, impeço-o de sair? Sou grande, mas ele é maior. Como? O que é mais importante, afinal, ela ou ele? Quem precisa mais de mim? Eu era a única sóbria da noite. Deixei-o ir. Vade retro. Ela precisava de ouvidos, colo, afago. Mas a dor, a vergonha, a humilhação não iriam sumir, pelo menos não até o outro dia. Mesmo com colo. Mesmo com ouvidos. Mesmo com afago. Mesmo se eu não o tivesse deixado ir embora, se o linchássemos ali mesmo. Mesmo se ele fosse preso for life. Todos os dias. A luta da minha vida ali, a duas quadras, no banheiro do boliche e eu fazendo strikes, cega e surda. Enganada pelo enganador. Impotente.

Dois: o banheiro.
“Queria ser homem”, ela me dizia, com os olhos mareados no banheiro do bar. “É mais fácil”. Daniela, se chamava, mas isso eu ainda não sabia. Só queria fazer xixi, mas ali ela estava, com a maquiagem borrada de quem chora. Quantas vezes não fui eu, chorando no banheiro do bar, madrugada adentro? Quantas vezes não fui eu ali, a dor multiplicada por cada mulher que entrava no banheiro e fingia que eu não existia? Não faria o mesmo. “Tudo bem? Você está chorando”, ao que me respondeu que sim. Que um babaca a fizera lembrar do ex. Era nova mas nem tanto, tinha seus vinte e pouquinho e terminara o primeiro namoro da vida havia pouco. Era o primeiro ex. Conversamos da vida, dos homens. Queria casar, achava que o primeiro seria o único, o último e a dor da queda na realidade nem sempre é fácil. Ou quase nunca. Quem pode culpá-la, afinal, por ter sido criada romântica, ingênua um pouco até? “Nesse momento e em outros vai parecer que todos são uns babacas, eu sei. Mas há homens capazes de tratar outros seres humanos, mulheres inclusive, com o respeito que merecem, sabe? Ele não era o único. Ele, esse com quem você estiver, não importa o contexto, nunca é o único. É melhor ser feliz, se você precisar escolher”. Ela me sorria, se emocionava. Nos abraçamos ali e logo juntaram-se mais duas à conversa. Todas éramos unânimes: Daniela era linda, e precisava pensar primeiro em ser feliz, depois em estar acompanhada ou casada ou o nome que se queira dar. Daniela e cada uma de nós. Desconhecidas, armáramos um verdadeiro fórum sobre a felicidade emocional, ali. Gostamos umas das outras, nos apresentamos, nos despedimos e saímos com os corações mais leves. Privilégios de ser mulher.
Três: a sala.
Lembrava-me de uma festa, há alguns anos. O assédio de uma, a solidariedade com a outra. Sabe, isto é ser mulher. O episódio da festa reunia estas histórias, mesmo tendo se passado anos antes. Era o final da graduação. A festa era grande, havíamos contratado um segurança até. Meu quarto trancado a chave, vejam o absurdo, para caso eu quisesse dormir quando ainda houvesse convidados. O medo do ataque. A chave no bolso. Os pufes num canto, ela dormia, sem estar bêbada nem nada. Apenas dormia, cansada, no meio da festa. Podia ser que houvesse trabalhado naquele dia. Tudo podia ser ali. Não importava. Ela dormia no canto da pista, sobre os pufes, tranquila. Ouço um rebuliço, vejo um homem andando rápido, quase correndo pelo casarão que dividíamos eu e intercambistas franceses. Era o primeiro “Banho Anual dos Franceses”, festa que se tornaria popular com o “Moulin Rouge”, uma para cada semestre do ano, no bairro que circunda a universidade, populoso de estudantes e repúblicas em antigos casarões de família com seis, oito, dez quartos, piscinas, edículas, jardins. Festas homéricas. Ele se misturava à multidão, fugitivo. Encontro alguém que me diz que um homem tentara agarrar a menina que dormia. Que as amigas lançaram-se sobre ela para impedi-lo, que ele as havia agredido. Uma menina machucada contava a história em meio à música alta da pista já vazia. Acionamos o segurança, este homem seria expulso da festa e, caso se recusasse a sair, chamaríamos a polícia. Um pequeno comitê de homens e mulheres prestava apoio emocional às vítimas na pista, com o som já desligado. Outro, eu inclusa, partia em expedição pela casa atrás do agressor. Em minha busca me deparo com o segurança colocando-o pra fora. Ele vai sem relutar, sabe que está errado. Mas isso não foi tudo. Em pouco tempo depois de livres desse escroto outro, uns dois se aproximam de uma amiga enquanto dançávamos à música que já voltara. “Não”, ela diz. Ele insiste. “Não”, ela diz. Ele insiste. “Não, ela diz.” Ele insiste mais. “Que parte do não você não entendeu, imbecil?”, proclamo em alto e bom som. “Mulher nunca diz sim, então o não sempre no final das contas vira sim”, dizia ele. “Não é não”, disse a amiga. “Acabei de expulsar uma pessoa da festa por assédio. Você quer ser o segundo?”. Ele riu. “Segurança!”, chamei. O segurança se aproxima. Os covardes saem de fininho. “Obrigada”, dissemos ao segurança. E foi logo em seguida, quando o horário de trabalho dele acabou, que a festa foi desligada e enxotamos os últimos gatos pingados dali, que reclamavam pois haviam pagado ingresso. Sem segurança, sem festa, era nossa condição. Cansada no corpo e na cabeça, deitei-me em minha cama. Em pouco segundos acordo assustada. A chave! Num pulo tranco a porta e volto a dormir, agora sim, tranquila.