Ontem foi Dia da Visibilidade Lésbica e pipocaram aqui um monte de textos bacanas. Há alguns dias, uma de nossas autoras fez uma crítica pública, não só ao nosso blog, mas também ao feminismo como um todo, reivindicando que a condição das mulheres negras fosse uma pauta no mínimo mais frequente. Neste blog, esta ausência se refletiu no número irrisório de posts que tratam, especificamente, das mulheres negras. Como bem disse a Luana, em 282 posts somente 3 falavam sobre o assunto, sendo que 2 eram dela mesma. Daí que tivemos a oportunidade de aprender muito a partir dessa crítica, eu, Luana, e todas as outras autoras e não-autoras do blog que participam do grupo chamado Blogueiras Feministas.

Quando esta infeliz estatística nos foi posta a olhos houve, da parte de algumas de nós, eu inclusa, a impressão pouco crítica de que o fato dos outros 279 posts não falarem sobre as mulheres negras não necessariamente significava que falavam sobre as mulheres brancas. Até que azamigue mais afiadas vieram com a novidade para a qual – pasmem – não tínhamos nos atentado até então: quando não se diz a cor, a etnia, a raça, ela é branca, ocidental, europeizada. Oras, não é uma das reivindicações do feminismo dar visibilidade às mulheres? Frisar que estamos aqui, que o coletivo plural no masculino não nos contempla? Então como não havíamos, esta fatia das BF, imaginado que quando não dizemos a cor, a cor é branca?
Simples. Somos brancas. Majoritariamente brancas. A internet é um ambiente majoritariamente branco. Mas isso vai além da cor da pele. Ser branco, ser negro, ser oriental, são questões que passam diretamente pela identidade com aquele biotipo étnico. E de onde vem a identidade? Da educação, da mídia, da televisão, dos jornais, das novelas, da família. Ah, a família… Espaço privilegiado de reprodução e manutenção do status quo, essa nossa velha companheira. Dizemos frequentemente que temos sim, sangue negro, nós brasileiras brancas, que também temos sangue índio, sangue europeu, e por aí vai. E temos. Mas porque o sobrenome que escolhemos é o estrangeiro? Porque insistimos em contar ao mundo de nossa ascendência russa, italiana, suíça, alemã e nos esquecemos de nossa ascendência africana e indígena? Ascendências essas, vejam, que não temos nem como saber exatamente de onde são. A que tribo pertenceu meu trisavô? A que sociedade pertenceram meus trisavós? Me entristece não saber. Me entristece a informação dizimada, apagada, nas voltas de árvores do esquecimento. As partes européias sei exatamente de onde vieram. Não é injusto?
Como todos os outros privilégios sociais, ser branca significa nunca ter vivido uma situação de discriminação racial. Embora haja gente que clame por aí que é discriminado por negros, que há racismo ao contrário e bla-bla-bla-whiskas-sachê, vale lembrar que o racismo é estrutural. Se sou branca e as pessoas em determinado bairro não confiam muito em mim por conta disso (improvável, já que há uma construção histórica e social aí que faz a aparência boa ser a branca, mas vamos supor uma realidade onde isso é corrente), isto não faz com que eu ganhe menos. Isto não faz com que eu tenha menos chances de ser contratada ou aprovada numa banca de seleção de doutorado pela minha “aparência”. Isto não faz com que as pessoas atravessem a rua ao me ver chegar. Isto não faz com que suponham que sou babá ou empregada doméstica ao me verem com crianças de outro biotipo étnico num parque. Isto não faz com que me olhem como se minha sexualidade estivesse disponível a todo e cada homem, como uma garrafa de cerveja.
Pessoalmente, minha afrodescendência não me parece suficiente para me autodeclarar negra, embora eu saiba que, sim, sou negra também. Pois pelo meu biotipo étnico – bem branquela, cheia de sardas, cabelo ondulado, nariz fino pontudinho, lábios de espessura mediana, etc. – sempre fui colocada e aprendi a me colocar no lado privilegiado da sociedade. Isto me deu uma espécie de capital racial, desigualmente distribuído entre as pessoas em nossa estrutura social. Que quero dizer com isso?
Que tendo este biotipo étnico sempre fui tratada como branca, com as regalias e privilégios que uma pessoa branca tem. Também sempre estudei e frequentei espaços majoritariamente brancos. Minhas cantoras ídalas na infância e adolescência eram quase sempre brancas (exceção para Mel B, das Spice Girls, ié!). As pessoas que eram mostradas como bacanas na TV eram brancas. As modelos, as “mulheres bonitas” eram brancas (porque, se fossem negras, não eram “mulheres bonitas”, eram “negras bonitas”, o que faz toda diferença). As professoras, cientistas, pesquisadoras, intelectuais, executivas, empresárias, princesas, presidentas: brancas, brancas, brancas, brancas…
Deriva-se daí a sensação de que, estando nestes espaços (universidade, mídia, política, etc) estou justamente onde eu, branca, deveria estar. Como esta sensação e este tratamento não são aplicados individualmente só a mim, mas parte da forma da nossa sociedade ver as pessoas, é como se eu partisse na corrida com 100m de adianto. As negras 100m atrás. Os homens negros uns 50m atrás de mim e os brancos uns 80m mais à minha frente. A pista da chegada a posições de poder, prestígio e salários altos tem 200m no total.
Façam as contas.
Então, sim, precisei de um chacoalhão de minhas companheiras pra perceber tudo isso. Ou pra lembrar, já que tive o privilégio (outro) de crescer em ambientes cercada de pessoas anti-racistas, mesmo com esse racismo estrutural nos cercando. Mas não, não tenho orgulho nenhum disso. Orgulho de ocupar uma posição privilegiada às custas de uma estrutura desigual que massacra, oprime, mata? Não, obrigada.
O feminismo é a idéia radical de que mulheres negras são gente.