Se tem um assunto específico sobre o qual escrevi muito pouco neste vida, este é o feminismo. Uma aparente contradição com uma pessoa que escreveu desde muito cedo e teve contato com o feminismo desde muito cedo. Talvez pela sua aparente obviedade e clareza pra mim. Talvez pela sua óbvia incerteza e indefinição. Talvez pela dificuldade em definir, torná-lo finito. Nem sei. Lembro de uma frase que um professor de literatura escreveu na lousa: “Aquilo que as palavras definem, ou tornam finito, faz-se infinito pelo próprio poder das palavras”, e quem disse isso foi o Northrop Frye, um canadense que estudou literatura e linguagem.
Ok, a frase é linda. Mas o que ela quer dizer? Por que ela está aqui, neste post, neste blog?

Bem, essa frase curtinha fala de um monte de coisas bem importantes e bem caras ao feminismo e aos feminismos. A mais elementar é que as palavras definem limites, dão forma, diferenciam as coisas. “Mesa” é uma coisa particular, em termos do objeto mesa, e ao denominarmos uma mesa automaticamente separamos as coisas em “mesa” e “não-mesa”. Mas as palavras têm um alcance que vai além do objeto material, do físico. “Mesa” é um conceito, se fomos mais além. “Virar a mesa”, “pôr a mesa”, são exemplos da palavra usada como conceito e não como denominação do objeto material. As palavras (acho que não no caso da mesa) também estão, por isso, em disputa. Seu significado relacional muda, é dinâmico.
E o feminismo?
Bom, o feminismo nasce disputando e contestando a palavra e o conceito “mulher” em ‘nossa’ sociedade (ou sociedades do tipo da nossa, eu diria). Contestando sua naturalização, reivindicando sua mudança. Mas o feminismo veio além, e coopera hoje com a disputa e a constestação de várias outras palavras, categorias e conceitos. Mulher, homem, gays, lésbicas, trans, mãe, pai, família, trabalho, estupro, violência, igualdade, direito… Tudo isso e muito mais está em jogo na luta feminista atualmente.
Além de tudo isso, a própria “unidade” (como diria o antropólogo David Schneider para colocar numa palavra só categoria, classificação, objeto material/nome e conceito) “feminismo” está em constante dinamismo e disputa. Não quero dizer com isso que o feminismo é “rachado” e cheio de “brigas internas”, mas que não é homogêneo nem unívoco nem universal e igual em todo lugar ou grupo. Há o que chamo de feminismo, essas atitudes cadenciadas mais ou menos articuladas de diferentes grupos e mulheres numa luta política comum, e há o que chamo aqui de feminismos, as atitudes feministas individuais de mulheres mundo afora, quer se declarem feministas, quer não. Diferem, estas duas coisas, na medida em que têm diferentes impactos e alcances na esfera pública da sociedade. Feminismos individuais podem ou não estar articulados com um feminismo político, público.
Estas duas coisas que aqui chamo de “feminismo” e “feminismos” me parecem existir de forma interdependente, ligados por uma outra coisa frequentemente xingada e escurraçada ou, ao contrário, enaltecida como a única salvação da humanidade: teoria. Que teoria? Ora, diversas teorias. Mas essa coisa mais geral, chamarei-a aqui de “teoria”, no singular, parte da reflexão destas práticas individuais (no caso do feminismo, os feminismos e não-feminismos e anti-feminismos e machismos e sexismos individuais) para elaborar esquemas explicativos do seu funcionamento. Ao mesmo tempo, o conhecimento de teoria nos permite entender estas práticas individuais. Esta é uma via de mão dupla, entre feminismos e teoria. Bem, mas e o “feminismo”, essa coisa política, pública, coletiva? Outra via de mão dupla entre essa coisa (“unidade”) e a “teoria”: ao mesmo tempo em que a teoria embasa a atuação e a percepção do feminismo, ela é objeto do olhar crítico construído por este feminismo.
Mas que teoria é essa, afinal?
Por mais que geralmente ao falarmos e teoria e feminismo a primeira coisa que venha à cabeça de muita gente seja teoria feminista, percebo que esta é apenas uma teoria. Talvez nem a mais importante, nem a mais essencial pros feminismos e pro feminismo, embora seja talvez uma das mais políticas. Minto, creio que seja bobagem hierarquizá-las assim. O que quero dizer é que há muitas teorias que são essencias pro feminismo e pros feminismos. Teoria política, teorias de gênero, teoria queer, teorias do direito, teorias linguísticas, teorias sociais, e por aí vamos…
Daí vale dizer sucintamente que a coisa “teoria” também é um campo e espaço de embates, debates e disputas para o feminismo (esse no singular). Um campo importantíssimo, que media as práticas individuais e sustenta práticas políticas. Esse modelo das vias de mão dupla tem “teoria” no centro, ligando-se a tudo mais. Mesmo que as teorias acadêmicas, oficiais e formais não sejam reconhecidas por seus agentes, elas têm uma responsabilidade muito grande na formação de visões e percepções de mundo, através dessa mediação.
O que quero dizer com isso?
Que enquanto feministas, é nosso dever disputar as teorias, conhecê-las, aproximarmo-nos delas. Não que cada feminista tenha o dever de ser uma expert em todas as teorias do mundo, nem que só as acadêmicas são feministas, não é nada disso. Mas, atuando coletivamente neste feminismo que é político, só poderemos ganhar quando abraçarmos o processo todo: feminismos === teoria === feminismo. É na mediação da prática individual e da prática coletiva e pública que fortalecemos visões de mundo, percepções, formas de definir e classificar as coisas. Esta é a nossa luta.
Com esta preocupação, algumas de nós Blogueiras Feministas iniciamos uma espécie de grupo de estudos interno, o “Leituras Feministas” (acesse www.leiturasfeministas.blogspot.com e acompanhe os resultados desta experiência), para apoiarmos esse processo umas das outras para além do que os debates correntes da nossa lista de e-mails (que já é incrível) permite. Por hora, este projeto está restrito às feministas da lista de discussão BF. Venham meninas!
Afinal, se a luta é simbólica, que nos armemos também com ideias.