Teoria pra quê?

Se tem um assunto específico sobre o qual escrevi muito pouco neste vida, este é o feminismo. Uma aparente contradição com uma pessoa que escreveu desde muito cedo e teve contato com o feminismo desde muito cedo. Talvez pela sua aparente obviedade e clareza pra mim. Talvez pela sua óbvia incerteza e indefinição. Talvez pela dificuldade em definir, torná-lo finito. Nem sei. Lembro de uma frase que um professor de literatura escreveu na lousa: “Aquilo que as palavras definem, ou tornam finito, faz-se infinito pelo próprio poder das palavras”, e quem disse isso foi o Northrop Frye, um canadense que estudou literatura e linguagem.

Ok, a frase é linda. Mas o que ela quer dizer? Por que ela está aqui, neste post, neste blog?

Afghan girl. Foto de Advocacy Project no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Bem, essa frase curtinha fala de um monte de coisas bem importantes e bem caras ao feminismo e aos feminismos. A mais elementar é que as palavras definem limites, dão forma, diferenciam as coisas. “Mesa” é uma coisa particular, em termos do objeto mesa, e ao denominarmos uma mesa automaticamente separamos as coisas em “mesa” e “não-mesa”. Mas as palavras têm um alcance que vai além do objeto material, do físico. “Mesa” é um conceito, se fomos mais além. “Virar a mesa”, “pôr a mesa”, são exemplos da palavra usada como conceito e não como denominação do objeto material. As palavras (acho que não no caso da mesa) também estão, por isso, em disputa. Seu significado relacional muda, é dinâmico.

E o feminismo?

Bom, o feminismo nasce disputando e contestando a palavra e o conceito “mulher” em ‘nossa’ sociedade (ou sociedades do tipo da nossa, eu diria). Contestando sua naturalização, reivindicando sua mudança. Mas o feminismo veio além, e coopera hoje com a disputa e a constestação de várias outras palavras, categorias e conceitos. Mulher, homem, gays, lésbicas, trans, mãe, pai, família, trabalho, estupro, violência, igualdade, direito… Tudo isso e muito mais está em jogo na luta feminista atualmente.

Além de tudo isso, a própria “unidade” (como diria o antropólogo David Schneider para colocar numa palavra só categoria, classificação, objeto material/nome e conceito) “feminismo” está em constante dinamismo e disputa. Não quero dizer com isso que o feminismo é “rachado” e cheio de “brigas internas”, mas que não é homogêneo nem unívoco nem universal e igual em todo lugar ou grupo. Há o que chamo de feminismo, essas atitudes cadenciadas mais ou menos articuladas de diferentes grupos e mulheres numa luta política comum, e há o que chamo aqui de feminismos, as atitudes feministas individuais de mulheres mundo afora, quer se declarem feministas, quer não. Diferem, estas duas coisas, na medida em que têm diferentes impactos e alcances na esfera pública da sociedade. Feminismos individuais podem ou não estar articulados com um feminismo político, público.

Estas duas coisas que aqui chamo de “feminismo” e “feminismos” me parecem existir de forma interdependente, ligados por uma outra coisa frequentemente xingada e escurraçada ou, ao contrário, enaltecida como a única salvação da humanidade: teoria. Que teoria? Ora, diversas teorias. Mas essa coisa mais geral, chamarei-a aqui de “teoria”, no singular, parte da reflexão destas práticas individuais (no caso do feminismo, os feminismos e não-feminismos e anti-feminismos e machismos e sexismos individuais) para elaborar esquemas explicativos do seu funcionamento. Ao mesmo tempo, o conhecimento de teoria nos permite entender estas práticas individuais. Esta é uma via de mão dupla, entre feminismos e teoria. Bem, mas e o “feminismo”, essa coisa política, pública, coletiva? Outra via de mão dupla entre essa coisa (“unidade”) e a “teoria”: ao mesmo tempo em que a teoria embasa a atuação e a percepção do feminismo, ela é objeto do olhar crítico  construído por este feminismo.

Mas que teoria é essa, afinal?

Por mais que geralmente ao falarmos e teoria e feminismo a primeira coisa que venha à cabeça de muita gente seja teoria feminista, percebo que esta é apenas uma teoria. Talvez nem a mais importante, nem a mais essencial pros feminismos e pro feminismo, embora seja talvez uma das mais políticas. Minto, creio que seja bobagem hierarquizá-las assim. O que quero dizer é que há muitas teorias que são essencias pro feminismo e pros feminismos. Teoria política, teorias de gênero, teoria queer, teorias do direito, teorias linguísticas, teorias sociais, e por aí vamos…

Daí vale dizer sucintamente que a coisa “teoria” também é um campo e espaço de embates, debates e disputas para o feminismo (esse no singular). Um campo importantíssimo, que media as práticas individuais e sustenta práticas políticas. Esse modelo das vias de mão dupla tem “teoria” no centro, ligando-se a tudo mais. Mesmo que as teorias acadêmicas, oficiais e formais não sejam reconhecidas por seus agentes, elas têm uma responsabilidade muito grande na formação de visões e percepções de mundo, através dessa mediação.

O que quero dizer com isso?

Que enquanto feministas, é nosso dever disputar as teorias, conhecê-las, aproximarmo-nos delas. Não que cada feminista tenha o dever de ser uma expert em todas as teorias do mundo, nem que só as acadêmicas são feministas, não é nada disso. Mas, atuando coletivamente neste feminismo que é político, só poderemos ganhar quando abraçarmos o processo todo: feminismos === teoria === feminismo. É na mediação da prática individual e da prática coletiva e pública que fortalecemos visões de mundo, percepções, formas de definir e classificar as coisas. Esta é a nossa luta.

Com esta preocupação, algumas de nós Blogueiras Feministas iniciamos uma espécie de grupo de estudos interno, o “Leituras Feministas” (acesse www.leiturasfeministas.blogspot.com e acompanhe os resultados desta experiência), para apoiarmos esse processo umas das outras para além do que os debates correntes da nossa lista de e-mails (que já é incrível) permite. Por hora, este projeto está restrito às feministas da lista de discussão BF. Venham meninas!

Afinal, se a luta é simbólica, que nos armemos também com ideias.