As relações entre as práticas e liberdades individuais e as estratégias políticas de quem se posiciona como feminista têm sido um tema recorrente de discussão na lista das Blogueiras Feministas. A partir disso, pensamos se o feminismo é um movimento que dá conta de abraçar em si mesmo uma pluralidade de sujeitos que se autodeclaram feministas ou se existem feminismos, múltiplos, assim como múltiplos são os sujeitos.

Bem, esse era o tema inicial. Mas a defesa tanto da pluralidade dentro do movimento quanto da ideia de feminismos, no plural, passa, a meu ver, pela linguagem. Discutir o que é feminismo, o que é ser feminista e o que é ser mulher no feminismo é, numa instância imediata, tratar de palavras. E as palavras representam as coisas, certo? Não exatamente.
Pensar a palavra como aquilo que representa algo (um objeto, um conceito) é pensá-la em termos de referência. Mas ai está o xis da questão, as palavras não representam as coisas; elas fazem parte dos processos de construção das coisas. Por exemplo, fala-se muito que as mulheres são mais sensíveis, mais cuidadoras, mais voltadas para a família etc.; preocupam-se muito com a aparência, gastam horas no salão e muitos reais em compras etc.; todas querem ser mães, só se realizam na maternidade etc. São todas idéias que circulam em vários meios sobre o que é ser mulher, mas que, na verdade, servem mais para se construir uma idéia do que é ser uma mulher “de verdade” do que para representar a mulher de fato.
Mas as palavras nos ajudam a diferenciar as coisas: se chamo um objeto de caneta, é porque esse objeto não é um lápis. Certo? Também não. Poderíamos até pensar que, ao nomear algo, diferenciamos esse algo do não-algo. Se eu chamo uma caneta de caneta, a diferencio de tudo que não é caneta. Um dos problemas dessa visão é que o mundo não é dual. Pensar o mundo nesses termos de “algo x não-algo” pode nos levar a algumas equações equivocadas. Se a palavra caneta diferencia esse objeto dos objetos não-caneta, a palavra homem diferencia o ser homem do ser não-homem, logo a mulher é o não-homem e passa a ser o que não é, a falta, a ausência.
Mas pelo menos podemos dizer que as palavras são conceitos, por exemplo, mulher como um conceito. Sabemos que há bilhões de mulheres no mundo, cada uma diferente da outra, e a palavra mulher estabelece a unidade entre elas. Certo? Bem… não.
As palavras não são um instrumento de transmissão da verdade, de conhecimento do real, elas não são uma forma de adequar o objeto (o referente) ao que é dito (a palavra em si). As palavras constroem noções de verdade, constroem conhecimento e constroem os próprios objetos aos quais elas supostamente se referem.
Só que as palavras, para fazerem uma espécie de sentido, envolvem uma convenção (por exemplo, num mundo dividido de acordo com o sexo, convencionou-se chamar algumas pessoas de mulher e outras de homem). Podemos dizer até que o uso da palavra envolve um ritual. E o ritual se repete no tempo. Então se o uso de uma palavra é um ritual, ele não se limita ao momento em que a palavra é dita, o dizer extrapola o passado e o futuro e se condensa naquele momento (presente) específico da fala. Esse excesso impede, por exemplo, que se identifique o contexto completamente. (Fala-se muito em contexto né, de qual mulher se está falando? De qual sociedade, quem, onde, quando? O único problema é que o contexto dificilmente vai ser completamente recuperado e aquilo que é dito vai se estabelecer justamente no momento em que é dito.)
Nas palavras difíceis de Derrida, o ritual tem, ainda, um caráter de repetição, ele é repetido várias e várias vezes e tal repetição não é acidental, mas, sim, estrutural. Ao ser reutilizada, qualquer palavra rompe com todo contexto dado, assim,engendrar novos contextos, de forma infinita e não-saturável. Ou seja, a palavra “mulher” pode romper com um contexto, por exemplo aquele tradicional que diz que toda mulher é delicada, sensível, maternal etc. e, ao ser utilizada em outro contexto construir significados diferentes do que é ser mulher. Da mesma forma, podemos ressignificar a mulher feminista (que, dizem por aí, odeia homens, nunca se depila é mau-humorada etc. etc.; pois é, são palavras que servem mais para construir uma ideia do que é ser uma mulher feminista do que para representar a mulher feminista).
Um caminho para ressignificar a mulher feminista é apostar na pluralidade. Existem mulheres feministas que não se depilam? Sim, existem. Como existem aquelas que se depilam. Existem as que são acadêmicas e produzem teoria, como existem as que são militantes, vão para as ruas e gritam palavras de ordem, como existem, também, as que trabalham em casa e se dedicam ao cuidado de suas filhas e seus filhos. Existem mulheres feministas brancas, negras, lésbicas, heterossexuais, bissexuais, religiosas, agnósticas, portadoras de deficiência e por ai vai. Não é preciso que haja necessariamente um feminismo para cada uma, mas, pra mim, é mais importante que todas nós caibamos no feminismo, que ele fale de todas nós e por todas nós. Assim, podemos pensar que somos todas mulheres, mas que ser mulher não se refere a algo fixo, pré-determinado, muito menos que ser mulher se opõe a ser homem. Assim, podemos significar e ressignificar a palavra mulher, construindo sempre novas formas de ser.