É lamentável que com sua pouca visibilidade, xs transsexuais só sejam retratadxs na televisão de forma agressiva e violenta. A novela “Vidas em Jogo”, da Rede Record, conta a história de um grupo de amigxs que ganham o prêmio da loteria na virada do ano e têm suas vidas transformadas radicalmente. Ao que parece, quase todas as personagens tem um segredo. Uma das personagens, D. Augusta, tem um filho que descobriu ao longo da trama que era “adotado”. Entre aspas porque ele achava que a mãe que o criou era apenas mãe adotiva. Na semana passada, a bruxa má da novela contou que na verdade D. Augusta não o tinha adotado. Na verdade, D. Augusta era seu pai. D. Augusta, portanto, é uma transsexual.
O enredo não diz direito se D. Augusta fez a transgenitalização, em quais condições ou por quê. A cena, como quase tudo na televisão, foi voltada para a espetacularização do sofrimento, sem muita densidade psicológica. Horrível. Raimundo, o filho, agrediu D. Augusta, deixando a mãe um trapo, dizendo que ela era uma aberração. E depois, pasmem, só uma pessoa foi consolar a mãe e todo mundo começou a abraçar o filho.
Eu fiquei completamente chocada com a cena. A carga emocional é muito forte, há um processo de reforço da violência e do preconceito. Mas, apesar de achar que este retrato não deveria ser assim, infelizmente a violência é parte da vida de muitxs transsexuais. Não podemos negar que a cena, talvez, represente algumas realidades, mas torna-se problemática por não questionar a atitude, fazendo parecer que ‘sim, é assim mesmo! xs transexuais devem ser tratados desta forma!’.
Quem ouve a composição de Pedro Abrunhos, a “Balada de Gisberta”, na voz de Maria Bethânia talvez não tenha a curiosidade de procurar a história da música.
Gisberta é na verdade Gilberto Salce Júnior, transexual brutalmente assassinada por 13 jovens de idades entre 13 e 16 anos. Gisberta não tinha lar, morava em um porão na cidade do Porto em Portugal onde se prostituia, já estava delibitada pelo virus HIV e foi mantida em cárcere, torturada e morta pelos menores que jogaram seu corpo em um poço de agua. Jogaram apenas o corpo, pois a vida de Gisberta ja havia sido toda esvairida pelo sofrimento que consumiu sua história de vida e consagrou sua morte.
Assim como a representação de Augusta, a história de Gisberta nos mostra o quanto ainda precisamos avançar combate à violência contra transsexuais.
Segundo o jornalista Aureliano Biancarelli, autor do livro “A diversidade revelada, a violência contra xs transsexuais geralmente começa muito cedo, ainda na infância, e provoca a exclusão da família. “Ou você se enquadra no sexo que nasceu ou vai ser expulso de casa”, disse o jornalista em entrevista à Rede Brasil Atual.
Muitas vezes, a opção dx transsexual é o “não falar”. Os silêncios sobre a sua própria situação são uma forma de proteção diante da violência constante expressa de diferentes maneiras, violência esta que pode chegar ao extremo da física, mas é cotidiana quando nos referimos à violência psicológica e, especialmente, à violência simbólica. Tarefas corriqueiras muitas vezes são verdadeiros constrangimentos: ir ao banheiro, procurar um médico (porque, além de serem raros os médicos da área, mesmo as especialidades mais convencionais requerem alguma sensibilidade ou tratamento diferenciado), usar determinado tipo de roupa, ser chamado pelo nome dado pelos pais e não pelo nome social, entre outras coisas.

Para lidar com a questão, o Estado precisaria garantir que xs transsexuais fossem vistxs com mais respeito, recebessem o apoio que fosse necessário no Sistema Único de Saúde e na legislação. Combater o preconceito, enfrentar os mitos e os problemas, enfim, tirar esta parte da população da marginalidade e ter a garantia de igualdade também para elxs. Hoje, não há legislação específica que dê conta do nome social, por exemplo. Mesmo com uma já larga jurisprudência, os juízes decidem conforme seu próprios entendimentos, e isso dá margem para uma violência simbólica por parte do próprio Estado.
Vale mencionar, ainda, que, nas estatísticas sobre crimes de homofobia, as maiores vítimas costumam ser as mulheres travestis e transexuais. Isso denota que elas são mesmo o maior alvo do preconceito, o qual acaba por ter sua expressão máxima na morte dessas mulheres. Por fim, parece interessante, e muito representativo, que não haja um dia do orgulho trans. O que existe é o dia da “visibilidade”: elxs ainda nem são vistxs, como poderiam já se orgulhar?
*Este texto não seria possível sem a colaboração madrugadeira de Marcelo Caetano 😉