Tenho a ligeira impressão que você, vendo este texto publicado no primeiro dia deste novo ano, estava a esperar um texto sobre como vamos mudar o mundo, sobre como a vida segue, sobre sonhos e esperanças. Bem, acho que não é bem isso. Mentira!: acho que é exatamente isso. O poema que segue abaixo foi escrito por mim, justamente no momento em que eu tentava enxergar sonhos e esperanças. É, eu sei bem que não é uma mensagem tradicional para um novo ano. Sem problemas: eu nunca fui convencional!

Mas é exatamente isso que eu quero desejar: apesar de tudo, e olha que ‘tudo’ nesse caso é muita coisa mesmo, que possamos continuar capazes de amar. Nem sempre é fácil, nem sempre é simples. Algumas vezes, é muito mais fácil amar os outros do que a nós mesmos, eu sei bem como é isso. Mas a gente segue tentando; faz parte! Embora eu não ache que a mudança de ano no calendário seja um momento especial, festivo ou qualquer coisa que o valha, parece-me ser um momento socialmente relevante. Pois bem: que, em 2012, o meu e os seus corações continuem existindo para compensar, equilibrar tudo aquilo que não sai bem como a gente esperava.
Coração pra compensar
Não escolhi ser o que sou
Não escolhi me sentir como me sinto
Mas fui feito assim, ainda que quebrado
Nasci mulher
Contra minha vontade, garanto
Com a cabeça de um homem, afirmo
Não sei a razão
Nem mesmo o motivo
Ou se seria um castigo
Pergunto-me todo dia
O porquê de tudo isso
Seria tão mais fácil
Ter tudo no lugar
Ver tudo se adequar
Andar de cabeça erguida
E em nenhum momento me envergonhar
Já cansei de questionar
Desabafar, conversar
Quero respostas
Quero resoluções
Mais do que isso, quero soluções
Nasci menino
No corpo de uma menina
Quem será a coitada
Que nascerá no meu lugar?
Porque, ah, tenho certeza
Que meu corpo por aí está
Perdido a vagar
E se cuidem, pois alguma alma desavisada
Nele há de entrar
Também há outros
Ou outras
Que carregam o mesmo peso
Compartilham o mesmo fardo
Daria meu corpo se pudesse
Em troca do delas
Ai, se pudesse
Mas não me resigno
A viver com o que tenho
E caminhar assim sendo
Um T perdido
No meio de um corpo errado
Em partes mutilado
De fato, fico é indignado
Como é que pode
Alguém nascer assim
Todo ferrado?
Que fábrica é essa
Da onde a gente veio
Que não faz troca
Nem garante o seu dinheiro de volta?
Porque é isso que eu quero
Quero de volta
Aquilo que me pertence
Um corpo inteiro
Que me faça,
Mesmo que não perfeito,
Pelo menos um pouco mais exato
E eu te digo que pesa
Carregar essa couraça de dor
E é tanta proteção
Que não dá nem pra fazer amor
Mas, de verdade,
Juro que não quero
Dar uma de covarde
Mas eu estou cansado e está tarde
E eu me pego pensando
Como seria
Se eu fosse assim,
Inteiro, e não pela metade?
Roupa costurada
E não camisa retalhada?
Será que ainda
Me faltaria alguma parte?
Porque agora
Pra compensar, pra equilibrar
Me sobra coração
Não posso mentir
É só por causa do coração
Que eu ainda consigo seguir
Não é fácil
Me amar? Não dá
Então, repito,
Sobra coração
Pra fazer amigo-irmão
Tentar amar quem te dá a mão
Porque com toda a dor do mundo
É preciso de um motivo muito forte
Pra eu desejar manter a respiração
E é essa a minha razão:
Toda essa abundância de coração
Pra fazer sangrar até a veia
Às vezes, até para a pulsação
Mas não cessa a indignação
E eu sigo
Mesmo fora da linha
Quando eles dizem que sou doido
Tudo que posso responder é que sou doído
Transbordo de paixão
Seu livros de anatomia
Suas regras de classificação
Não são suficientes
Para a minha compreensão
Sou mais do que um binômio
Não sou ela versus ele
Tampouco menos gente
Sequer menos ilusão
Não ando com gasolina
O que me move é o coração
Bate dentro do peito
Também esse estraçalhado
Mas aí sim é que bate alto
Ecoando toda agonia
De nascer, viver e, que os moralistas me livrem,
Morrer assim todo errado
Não me resta nada
Ficou um cérebro já cansado
Braços velhos e usados
Mas não se esqueça
Ainda que o coração não seja de aço
É nele, e só nele, que guardo
Esse grito, esse amor abafado
Não me canso, nem me calo
Só posso brindar:
Tenho mesmo um coração exagerado
Mesmo que ele bata
Dentro do peito errado.