E que, em 2012, nosso coração compense

Tenho a ligeira impressão que você, vendo este texto publicado no primeiro dia deste novo ano, estava a esperar um texto sobre como vamos mudar o mundo, sobre como a vida segue, sobre sonhos e esperanças. Bem, acho que não é bem isso. Mentira!: acho que é exatamente isso. O poema que segue abaixo foi escrito por mim, justamente no momento em que eu tentava enxergar sonhos e esperanças. É, eu sei bem que não é uma mensagem tradicional para um novo ano. Sem problemas: eu nunca fui convencional!

Andamos precisados de corações que compensem / Foto de Jason Hargrove no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Mas é exatamente isso que eu quero desejar: apesar de tudo, e olha que ‘tudo’ nesse caso é muita coisa mesmo, que possamos continuar capazes de amar. Nem sempre é fácil, nem sempre é simples. Algumas vezes, é muito mais fácil amar os outros do que a nós mesmos, eu sei bem como é isso. Mas a gente segue tentando; faz parte! Embora eu não ache que a mudança de ano no calendário seja um momento especial, festivo ou qualquer coisa que o valha, parece-me ser um momento socialmente relevante. Pois bem: que, em 2012, o meu e os seus corações continuem existindo para compensar, equilibrar tudo aquilo que não sai bem como a gente esperava.

 

Coração pra compensar

Não escolhi ser o que sou

Não escolhi me sentir como me sinto

Mas fui feito assim, ainda que quebrado

Nasci mulher

Contra minha vontade, garanto

Com a cabeça de um homem, afirmo

Não sei a razão

Nem mesmo o motivo

Ou se seria um castigo

Pergunto-me todo dia

O porquê de tudo isso

Seria tão mais fácil

Ter tudo no lugar

Ver tudo se adequar

Andar de cabeça erguida

E em nenhum momento me envergonhar

Já cansei de questionar

Desabafar, conversar

Quero respostas

Quero resoluções

Mais do que isso, quero soluções

Nasci menino

No corpo de uma menina

Quem será a coitada

Que nascerá no meu lugar?

Porque, ah, tenho certeza

Que meu corpo por aí está

Perdido a vagar

E se cuidem, pois alguma alma desavisada

Nele há de entrar

Também há outros

Ou outras

Que carregam o mesmo peso

Compartilham o mesmo fardo

Daria meu corpo se pudesse

Em troca do delas

Ai, se pudesse

Mas não me resigno

A viver com o que tenho

E caminhar assim sendo

Um T perdido

No meio de um corpo errado

Em partes mutilado

De fato, fico é indignado

Como é que pode

Alguém nascer assim

Todo ferrado?

Que fábrica é essa

Da onde a gente veio

Que não faz troca

Nem garante o seu dinheiro de volta?

Porque é isso que eu quero

Quero de volta

Aquilo que me pertence

Um corpo inteiro

Que me faça,

Mesmo que não perfeito,

Pelo menos um pouco mais exato

E eu te digo que pesa

Carregar essa couraça de dor

E é tanta proteção

Que não dá nem pra fazer amor

Mas, de verdade,

Juro que não quero

Dar uma de covarde

Mas eu estou cansado e está tarde

E eu me pego pensando

Como seria

Se eu fosse assim,

Inteiro, e não pela metade?

Roupa costurada

E não camisa retalhada?

Será que ainda

Me faltaria alguma parte?

Porque agora

Pra compensar, pra equilibrar

Me sobra coração

Não posso mentir

É só por causa do coração

Que eu ainda consigo seguir

Não é fácil

Me amar? Não dá

Então, repito,

Sobra coração

Pra fazer amigo-irmão

Tentar amar quem te dá a mão

Porque com toda a dor do mundo

É preciso de um motivo muito forte

Pra eu desejar manter a respiração

E  é essa a minha razão:

Toda essa abundância de coração

Pra fazer sangrar até a veia

Às vezes, até para a pulsação

Mas não cessa a indignação

E eu sigo

Mesmo fora da linha

Quando eles dizem que sou doido

Tudo que posso responder é que sou doído

Transbordo de paixão

Seu livros de anatomia

Suas regras de classificação

Não são suficientes

Para a minha compreensão

Sou mais do que um binômio

Não sou ela versus ele

Tampouco menos gente

Sequer menos ilusão

Não ando com gasolina

O que me move é o coração

Bate dentro do peito

Também esse estraçalhado

Mas aí sim é que bate alto

Ecoando toda agonia

De nascer, viver e, que os moralistas me livrem,

Morrer assim todo errado

Não me resta nada

Ficou um cérebro já cansado

Braços velhos e usados

Mas não se esqueça

Ainda que o coração não seja de aço

É nele, e só nele, que guardo

Esse grito, esse amor abafado

Não me canso, nem me calo

Só posso brindar:

Tenho mesmo um coração exagerado

Mesmo que ele bata

Dentro do peito errado.