Os limites da libertação masculina

Ontem, um texto circulou muito pela internet. Sob o título de “Enfim, a emancipação masculina“, da autoria de Eliane Brum, falava-se a respeito de masculinidades, sobre como os homens ainda vivem submetidos a uma série de normas e padrões de comportamento, sobre como se fala da libertação das mulheres, mas muito pouco da libertação dos homens. Muito bem escrito, foi elogiado e compartilhado por uma série de amigas, mulheres e feministas que respeito muito. Concordo com várias coisas que foram ditas, mas tenho algumas considerações a fazer.

Receita para ser homem: "Homens são como café: os melhores são ricos, quentes e podem te manter acordada a noite toda"

Primeiro, é mesmo um fato de que, como homens, há muita coisa que é esperada de nós: como se portar, como andar, como falar, como tratar as mulheres e os amigos, ou mesmo o tipo de emprego que devemos ter e a maneira com que devemos nos relacionar. Precisamos acabar com isso! Esse negócio de ditar regra, de dizer como cada um deve levar sua vida nunca funcionou e continua a não funcionar para ninguém. Só causa problemas para os que decidem conduzir-se de outra forma e mesmo aos que decidem seguir tudo à risca, mas não estão assim tão confortáveis ou à vontade com aquilo que fazem. Contudo, na vida cotidiana, quando é preciso lutar para se afirmar como algo ou para conquistar determinados espaços, torna-se muito complicada essa transgressão toda. Ser pioneiro é sempre difícil!

Laerte foi muito comentado/a ao longo do texto. A maneira que escolheu para apresentar-se e representar-se, sem grandes definições ou encaixe, levando a vida como lhe é mais conveniente em cada momento é, de fato, admirável. Jamais negarei a importância do que ele/ela está fazendo para todos aqueles que, de algum modo, sentem-se meio perdidos e fora de lugar. Porém, é preciso admitir que as condições para que ele/ela faça isso, ainda que não favoráveis, fáceis ou simples, parecem ser melhores do que a de muitas pessoas. É profissionalmente reconhecido/a, tem alguma estabilidade financeira, algumas conquistas ao longo da vida. Seu espaço já é seu. Ainda que, claro, hajam casos em que pessoas foram escanteadas após assumirem modos de vida que causam estranhamento, não se pode negar que há diversos fatores na vida que nos ajudam e nos dão tranquilidade para assumir certos posicionamentos.

Eu, enquanto um jovem homem transexual, no início da carreira acadêmica, sem emprego, sem grandes conquistas ou quantias no banco não consigo negar e enfrentar todas as estruturas que me são apresentadas. De várias maneiras, todos os dias, preciso reforçar os maneirismos e estereótipos masculinos. Não é isso que quero fazer, digo com sinceridade, mas, para ser entendido, reconhecido e respeitado como o homem que sou, ou que estou a tornar-me, preciso deixar claro em mim alguns aspectos masculinos, aspectos que às vezes soam banais para os que não precisam se provar como nada, uma vez que sua condição já está dada e não é colocada em cheque nas mais corriqueiras situações, mas que são muito importantes para quem está a lutar para ser percebido como aquilo que, a priori, todos dizem que você não é.

Tento não reforçar coisas como agressividade, violência e outras coisas que considero estúpidas. Todavia, preciso vigiar-me em algumas pequenas atitudes: o modo como sento, o jeito com que falo, a maneira de mexer as mãos ou como sorrio. Não acho que ninguém seja mais ou menos homem de acordo com estas características, mas nos lugares em que não me conhecem, onde as pessoas não sabem sobre a minha transexualidade, tudo que quero é ser um homem ‘normal’. Soa-me muito engraçado, inclusive, que eu faça tanto esforço apenas para passar despercebido, como mais um na multidão.

Aprecio muitos aspectos da teoria queer. Não ter a necessidade de nomear, classificar, categorizar, explicar é libertador, é revolucionário. É, mesmo, genial! No entanto, como viver desta forma, como ser livre quando tudo e todos conspiram contra você? Às vezes, tenho a impressão de que há sempre alguém a espreitar-me, alguém que espera por um deslize ou vacilo meu, aquele momento em que eu usarei um pronome no feminino, e não no masculino, para designar-me e poderão dizer: “Viu? Você não é mesmo um homem. É uma fase, é só uma confusão; desista desta idéia maluca”. Não é fase, maluquice ou confusão, é só aprendizado. Este sou eu, perdido, não nego, em um mundo que me diz que eu sou aquilo que não sou, que quer que eu acredite que ser do jeito que eu sou é doença, pecado, erro ou coisa que o valha. Não é fácil ser livre quando há tantas correntes a te prender.

Ser homem não é fácil ou simples; não tem receita ou manual de instrução. Mas desconstruir a idéia do que é ser um homem também não é tarefa das mais gratas. Eu tento, juro mesmo que tento destruir estereótipos ou pré-conceitos. É difícil. Não quero reproduzir aquilo que, discursivamente, tento sempre negar. Não quero reproduzir o que, de forma mais ou menos direta, é responsável pelo fato de ser tão difícil eu conseguir me encaixar e encontrar meu lugar no mundo. Ao mesmo tempo, busco, desesperadamente, um lugar neste mundo. Ele me nega o tempo todo, mas é aqui que vivo, é aqui que preciso aprender a viver.

Homem! (?) - Por Corey Robinson

 

Ainda estou tentando entender como tudo funciona, buscando compreender o que é necessário fazer para conseguir ser só ‘mais um cara’. Ainda não sei, ainda não tenho resposta. Talvez, Laerte já saiba muito mais desta vida do que eu. Provavelmente, sabe mesmo, mas estou apenas a trilhar meus próprios passos. Ainda não posso dizer se chegaremos no mesmo lugar. Provavelmente não, e eu acho que isto é mesmo muito bom! Todo dia, pouco a pouco, liberto-me e, então, Caetano-me.

 

Comum de dois, Pitty

Precisou correr
Uma vida pra entender
Que ele era assim
Um comum de dois