Algumas histórias são tristes demais para contar. Essa é uma delas. Aconteceu na escola aonde meu marido estudou, e em outras escolas do distrito de Anoka-Hennepin, em Minnesota, nos Estados Unidos. E foi contada em brilhante reportagem de Sabrina Rubin Erdely na revista Rolling Stone, “One Town’s War on Gay Teens” (“A guerra de uma cidade contra os adolescentes gays”), na qual esse post foi baseado.
Em 1997, quando meu marido terminou o colégio, o bullying escolar era muito forte. Não tão ruim, porém, como chegaria a ser no final dos anos 2000, quando nove adolescentes cometeram suicídio em um período de dois anos. Um número tão alto que dá pra se falar em epidemia. E causado em larga medida, sem que nenhum dos jovens se desse conta, por uma guerra ao “modo de vida gay”, declarada nos bastidores por grupos religiosos ultra-conservadores.
Tomboys
Samantha Johnson foi uma das primeiras a morrer. Ela era uma “tomboy”, termo em inglês para designar meninas pouco “femininas”, “machonas”. Ela estava no oitavo ano (8th grade), e era uma menina alegre, que aparentemente conseguia lidar bem com o bullying na escola. Quando as colegas de time de vôlei a barraram do vestiário, dizendo que ela era um garoto, ela simplesmente parou de frequentar as aulas. Sam também estava envolvida na organização de um clube da Gay Straight Alliance (“Aliança entre Gay e Héteros”), um ponto de encontro para que os jovens pudessem falar abertamente sobre sua sexualidade. Brittany Geldert, de 13 anos, ela mesma uma “tomboy”, confiava na amiga Sam para ajudar a lidar com os comentários maldosos e os ataques que recebia todos os dias. Brittany mal pôde acreditar quando soube que Sam entrara na banheira e dera um tiro de espingarda na cabeça. Era o dia 22 de novembro de 2009.
Antes de Sam, um garoto havia se matado em outra escola do distrito. E depois dela, viriam muitos outros. Dos nove estudantes mortos em dois anos, quatro eram gays, ou percebidos como gays pelos colegas. Vários sofriam bullying. Um problema nacional, nos Estados Unidos: a reportagem da RS traz o dado de que jovens lésbicas e gays tentam o suicídio quatro vezes mais que os héteros; um terço dos jovens gays tentou suicídio em algum momento (contra 13% dos héteros). E mesmo entre os jovens héteros, o suicídio dos colegas gera o efeito de epidemia. “Os garotos começaram a sentir que a resposta normal ao stress era tirar a própria vida”, afirmou o psicólogo Dan Reidenberg para a Rolling Stone. No livro O Poder das Conexões (Ed. Campus), o médico e pesquisador Nicholas Christakis fala das epidemias de suicídios entre adolescentes, um grupo social altamente suscetível a esse tipo de influência. Esse fato é conhecido como Efeito Werther, por conta da onda de suicídios causadas pela obra Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, no século 18.
Os professores de Anoka viam os alunos gays serem abusados e provocados pelos colegas todos os dias. Eles, porém, não podiam se manifestar.
“Homossexual não é normal”
Em 1994, o sobrinho de uma senhora americana chamada Barb Anderson teve uma aula de saúde e sexualidade na escola. A aula tratava da homossexualidade como uma coisa normal. Barb, uma ex-professora de espanhol membro do grupo conservador Minnesota Family Council, ficou ultrajada. E entrou em uma cruzada pessoal anti-gays.
Ela e mais quatro pais conseguiram entrar no comitê de revisão do currículo de saúde e sexualidade, que iria definir as diretrizes a ser seguidas pelas escolas públicas das 13 cidades que compõem o distrito de Anoka-Hennepin (nos Estados Unidos, as escolas públicas seguem as regras e as políticas determinadas por seu distrito). O grupo argumentou que qualquer forma de tolerância à homossexualidade era uma forma de promovê-la, transformando jovens héteros em gays. “Abram seus olhos, pessoal,” ela escreveu para o jornal local. “E se um jovem de 15 anos for seduzido para o comportamento homossexual e então contrair AIDS?”
Depois de sete meses de discussões, os conservadores venceram. Conseguiram aprovar uma diretriz dentro do currículo de saúde, em que a “homossexualidade não deveria ser tratada como um modo de vida normal ou válido […]”. A política veio a ser conhecida como No Homo Promo, que foi transmitida sem muito alarde aos professores. Nada foi comunicado aos pais. As discussões sobre o tema em sala de aula foram diminuindo, até acabarem de vez.
A posição de Barb e do MFC não é única. Na região de Anoka, grupos religiosos ultra-conservadores têm muita força. “Para igrejas como a First Baptist Church of Anoka, a homossexualidade é uma forma de doença mental causada por disfunção familiar, traumas na infância e exposição à pornografia – uma perversão curável por meio de terapia intensiva”, diz a reportagem da Rolling Stone. Eles têm o apoio da parlamentar Michele Bachmann, que representa o distrito no congresso americano. Bachmann estudou na Anoka High School, mesmo colégio de meu marido, e palco de alguns dos suicídios dessa história.
Estaria tudo muito bem se as crenças dos grupos religiosos fossem mantidas em foro privado. Mas não é o que acontece. Uma das ações das igrejas conservadoras, por exemplo, é o Day of Truth (“Dia da Verdade”), em que visitam as escolas para falar que homossexualidade é errado e convidar os jovens “pecadores” a procurarem a cura. Distribuem camisetas e estimulam o diálogo anti-gay. Os grupos também criticaram duramente a criação dos Gay Straight Alliance Clubs, que chamaram de “clubes de sexo”.
Ao pressionarem o conselho do distrito a não tratar de homossexualidade, os grupos religiosos e “pró-família” mostraram sua força e ajudaram a selar o destino dos adolescentes que viriam a morrer anos depois.
Os protestos
A No Homo Promo só foi revisada em 2009, quando um estudante entrou com uma queixa no Departamento Estadual de Direitos Humanos, dizendo que dois professores haviam feitos comentários jocosos sobre sua suposta homossexualidade. A diretriz foi discutida e substituída por uma versão ainda mais confusa, que pedia “neutralidade” ao tratar do tema. Os professores e orientadores ficaram perdidos. Podiam dar autores gays nas aulas de literatura? Como lidar com alunos que escrevessem artigos sobre homossexualidade? Como reagir quando alunos reclamavam do bullying sofrido? Muitos estudantes dessa época relatam ter sofrido ataques e violências na frente do staff da escola, sem que esses interferissem. Os alunos gays, e os percebidos como gays pelos colegas, continuavam sozinhos.
No sétimo suicídio, do garoto Justin Aaberg, de 15 anos, o distrito ficou em estado de alerta. Já não era possível fingir que nada estava acontecendo. Alguns professores começaram a desafiar as regras e falar do tema. Os estudantes ficaram chocados ao descobrir a diretriz que era a causa do silêncio anterior dos professores. A mãe de Justin, o adolescente que se enforcara em seu quarto com um cinto, ficou enraivecida. Tornou-se uma militante pelos direitos LGBT em Anoka, e fez uma petição pedindo a Michele Bachmann que denunciasse o bullying anti-gay nas escolas do distrito. Outros grupos LGBT tomaram conhecimento da questão, e o assunto começou a ser investigado. Finalmente, as coisas começavam a mudar.
Um lugar para se sentir seguro
Depois da epidemia de mortes, os jovens decidiram se unir. Os clubes da Gay Straight Alliance Network começaram a se multiplicar, e hoje estão presentes em todas as escolas públicas do distrito de Anoka-Hennepin. O assunto, porém, continua em alta. Os grupos religiosos são fortes. Barb Anderson, a senhora que conseguiu mudar a diretriz escolar do distrito, disse que a causa dos suicídios era uma só: o fato de os estudantes terem abraçado um “modo de vida gay”.
Um novo documentário, Bully, traz cenas reais de ofensas em ônibus escolares, de violência nas escolas e do descaso administrativo em colégios americanos. Ironicamente, o filme recebeu uma censura do tipo R, que proíbe jovens com menos de 17 anos de assistirem sem supervisão adulta. Isso frustra a intenção do diretor Harvey Weinstein, que pretendia fazer um tour com o filme pelas escolas americanas para levantar o debate sobre o tema. O diretor promete recorrer.
Em tempos em que as bancadas religiosas ganham força no Brasil, é preciso prestar atenção no assunto. Materiais feitos para lidar com a questão da homossexualidade na escola são vetados, tachados de “kit-gay”. Não estamos tão longe dos loucos criacionistas norte-americanos, afinal. Vale a pena dar uma lida na reportagem da Rolling Stone para saber mais. O texto é longo, e a história é triste, mas precisa ser contada. Para que evitemos os mesmos erros no futuro.
*Cenas tiradas do trailer no Youtube do documentário Bully, de Harvey Weinstein.