“Louca falível, terna e vulnerável/ que se apaixona feito puta triste por causas justas/, homens bonitos e palavras brincalhonas.” Assim a nicaraguense Gioconda Belli define a si mesma, em um de seus poemas. Uma mulher apaixonada. Pela vida, por seus homens, pelos filhos, pelo povo, pela Nicarágua. Alguns de seus romances já saíram no Brasil, como O País das Mulheres (2010), mas só agora é que podemos ler, pela primeira vez, sua poesia. Publicado originalmente em 1992, O Olho da Mulher reúne a produção poética da autora até a data e sai pela Arte Desemboque Casa Editorial, com tradução do poeta Silvio Diogo e ilustrações de Carolina Tiemi Teixeira. O lançamento em São Paulo será na semana que vem, nos dias 21 (Sarau da Cooperifa, 21h) e 22 (Espaço Cultural Latino-Americano, 19h30). É o livro de poesia do mês nas Blogueiras Feministas.

Belli (1949, Manágua) começou a escrever ainda jovem, na mesma época em que se envolveu com a luta para derrubar a ditadura no país. Aos 19 anos, já estava casada e logo seria mãe. Tinha uma vida privilegiada na burguesia de Manágua, mas sentia-se sufocada. Afinal, o clima estava tenso no país. Depois do terremoto de 1972, decidiu se juntar de vez à Frente Sandinista de Libertação Nacional, dessa vez não mais como colaboradora clandestina, mas na linha de frente, deixando as filhas com a família. O clima foi ficando cada vez mais pesado, e ela exilou-se no México em 1975. Em seguida, em Costa Rica e Cuba. Só retornou à sua amada Manágua em 1979, quando os sandinistas tomaram o poder.
Em 1990, o partido dos sandinistas perdeu as eleições. Nos anos seguintes, Belli se tornou crítica do partido. Nesse tempo, continuou a escrever. Alguns de seus livros receberam vários prêmios, como o romance A Mulher Habitada (1988) e sua autobiografia, O País Sob Minha Pele (2001).
Poeta do gozo
A poesia de Belli é de celebração. Nisso lembra Walt Whitman, que cantou a alegria de ser, não na América Latina, mas nos Estados Unidos. A poesia dela “nasce da felicidade, dessa consciência dolorosa de ser feliz sem motivo.”
Sou cheia de gozo,
cheia de vida,
carregada de energias
como um animal jovem e contente.
imantado o meu sangue com a natureza,
sentindo o chamado do monte
para correr feito um veado desenfreadamente,
acariciando o ar, […]
Sua poesia é de fecundidade: ela se funde com a terra, ela é a terra, as árvores, os cavalos jovens, os pássaros. Mulher em que a letra, a terra e o sangue são a mesma coisa: “meu sangue transporta letras dentro do meu corpo”.
Sinto que sou um bosque
que há rios dentro de mim,
montanhas,
ar fresco, ralinho
e parece-me que vou espirrar flores
e que, se abro a boca,
provocarei um furacão com todo o vento
que tenho contido nos pulmões.
Ela também cantou o amor: tantos poemas dedicados aos homens que passaram por sua vida. Mas também é poesia de luta, de ideais, de identificação com o povo da Nicarágua (e nisso também ouve-se um eco de Whitman, o cantar de um país, de um povo). Seus amantes, em geral, eram também companheiros de luta, de revolução.
Estranho sentir este sol outra vez
e ver o júbilo das ruas alvoroçadas de gente,
as bandeiras rubro-negras por todos os lados
e uma nova face da cidade que desperta
com a fumaça dos pneus queimados
e as altas fileiras de barricadas.
Gioconda Belli doa-se. “Escrever para dar forma ao mundo, /para delinear o perfil da lágrima, /a tristeza da árvore cortada”. Uma poesia derramada, de afirmação, que busca espantar a tristeza, embora nunca ignore a dor, o luto, a saudade. Poesia fecunda, que fala de ser mulher, e dos universos imensos que isso abarca.
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O Olho da Mulher, de Gioconda Belli
Arte Desemboque Casa Editorial
135 poemas, 256 páginas
R$ 25
Pode ser comprado pelo site da editora ou pelo Facebook.
Confira as datas dos lançamentos em São Paulo, Belo Horizonte e São José dos Campos.
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Alguns poemas completos do livro O Olho da Mulher:
A MÃE
A mãe
trocou de roupa.
A saia virou calça;
os sapatos, botas;
a pasta, mochila.
Já não canta cantigas de ninar,
canta canções de protesto.
Vai despenteada e chorando
um amor que a envolve e assombra.
Já não ama somente seus filhos,
nem se dá somente a seus filhos.
Leva suspensas nos peitos
milhares de bocas famintas.
É mãe de meninos maltrapilhos
de molequinhos que rodam pião em calçadas empoeiradas.
pariu a si mesma
sentindo-se — às vezes —
incapaz de suportar tanto amor sobre os ombros,
pensando no fruto de sua carne
— distante e sozinho —
chamando por ela na noite sem resposta,
enquanto ela responde a outros gritos,
a muitos gritos,
mas sempre pensando no grito solitário de sua carne
que é um grito a mais nessa gritaria de povo que a chama
e lhe arranca até os próprios filhos
de seus braços.
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SANGUE DE OUTROS
Leio os poemas dos mortos
eu que estou viva
eu que vivi para rir e chorar
e gritar pátria Livre ou Morrer
em cima de um caminhão
no dia em que chegamos a Manágua.
Leio os poemas dos mortos,
vejo as formigas sobre a grama,
meus pés descalços,
teu cabelo liso,
costas curvadas numa reunião.
Leio os poemas dos mortos
e sinto que este sangue com o qual nos amamos
não nos pertence.
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SEM PALAVRAS
inventei uma grande árvore,
maior que um homem,
maior que uma casa,
maior que uma última esperança.
Fiquei com ela durante anos
sob sua sombra
esperando que falasse comigo.
Eu lhe cantava canções,
abraçava-a,
coçava sua rugosa casca
entremeada de samambaias,
meu riso rebentava flores em seus galhos,
e a cada gesto meu cresciam-lhe folhas,
brotavam-lhe frutas…
Era minha como nunca nada foi meu,
mas não falava comigo.
Eu vivia atenta aos ruídos dela,
ouvindo seu suave esvoaçar de borboleta,
seu rangido de animal da selva
e sonhava com a voz dela como um lindo canto,
mas não falava comigo.
noites inteiras chorei a seus pés,
apertada entre suas raízes,
sentindo seus braços sobre mim,
vendo-a erguida sobre mim,
sabendo que pensava em mim,
mas não falava comigo…
Aprendi a cantar como pássaro,
a acender-me como vaga-lume,
a relinchar feito cavalo.
Às vezes me enfurecia e fazia com que caíssem
todas as suas folhas,
deixava-a nua e envergonhada
diante dos guanacastes,
esperando que — talvez — entendesse ter sido por mal,
como alguns homens,
mas nada.
Aprendi tantas coisas para poder lhe falar,
despi-me de tantas outras necessidades
que esqueci até como eu me chamava,
esqueci de onde eu vinha,
esqueci a que espécie animal eu pertencia
e fiquei muda e sempre-viva
— esperançosa —
entre seus galhos.
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EROS É A ÁGUA
Entre tuas pernas
o mar me mostra estranhos arrecifes
rochas erguidas corais altaneiros
contra a minha gruta de ostras concha madrepérola
teu molusco de sal persegue a corrente
a água cruza inventa barbatanas em mim
mar noturno de luas submersas
teu ondular brusco de polvo excitado
acelera minhas brânquias os latejos de esponja
os cavalos minúsculos flutuando entre gemidos
enredados em longos pistilos de medusa.
Amor entre golfinhos
dando saltos te lanças sobre meu flanco leve
te recebo sem ruído te olho entre borbulhas
teu riso envolvo com minha boca espuma
leveza da água oxigênio de tua vegetação de clorofila
a coroa de lua abre espaço ao oceano.
Dos olhos prateados
flui longo olhar derradeiro
e nos levantamos do corpo aquático
somos carne outra vez
uma mulher e um homem
entre as rochas.