Estavam casados há 25 anos. Ele, supervisor de produção de máquinas agrícolas. Ela, dona de casa exemplar, que cuidava bem da casa e dos filhos. Devotos, seguiam fielmente os dogmas da igreja, sendo membros exemplares que participam de todas as missas regularmente. Participavam até do coral! Muitos diriam, ao ver este casal: “Esta família deve ser muito feliz! É um modelo de felicidade!”

Modelo de felicidade. Já reparou que nos pregam isso a todo momento? Siga fielmente o roteiro e será feliz. Mas, será que necessariamente temos que seguir um script do modo como nos ensinam? A felicidade não pode ser encontrada se fizermos nosso próprio roteiro?
Essas perguntas e outras reflexões são propostas ao espectador em Normal (2003), belíssimo filme de Jane Anderson exibido na televisão americana. Retrata o processo de transição de uma mulher transexual, conhecida por todos como Roy, que depois passa a se referir pelo nome escolhido por ela própria: Ruth.
Ruth viveu muito tempo de sua vida como um homem. Casou-se com Irma, tiveram filhos e viveram juntos por 25 anos. Por todo este tempo, Ruth reprimiu algo que depois do 25º aniversário de casamento já não podia mais negar: sentia-se como uma mulher presa num corpo de homem. A partir daí começa a sua jornada pessoal para se sentir completa,ou seja, satisfeita com seu próprio corpo, iniciando a terapia hormonal e marcando a cirurgia de readequação sexual para deixar seu corpo mais ao seu agrado.

Claro que sua decisão não foi recebida com flores e chocolates. Sua esposa não aceita o fato de não estar casada com um homem, já que, na sua visão, Ruth viveu tanto tempo assim. Sente-se desnorteada, perdida, torcendo para que tudo aquilo fosse uma brincadeira de mau gosto. Sonhando em ter Roy, seu marido, como ele sempre se mostrou ser aos olhos de Irma: um homem.
A reação de Irma à condição de Roy ilustra bem a reação das pessoas ditas “normais”, ou cissexuais, às pessoas transexuais: elas não conseguem entender como é difícil viver num mundo em que sua anatomia corporal está presa a uma definição de gênero arbitrária.
Se você nasceu com vagina, você é mulher. Se você nasceu com pênis, você é homem. Essas definições são limitadoras por demais e fazem com que as pessoas cissexuais passem a olhar com estranhamento e desdém as pessoas transexuais. Este olhar às pessoas transexuais acaba levando ao ódio e ao preconceito.

Ruth sente na pele o preconceito das pessoas “normais”. Toda a sua vida lhe é tirada. Os amigos se afastam, os colegas de trabalho a tratam com desrespeito e a ameaçam. Sua religião, a quem ela servia fielmente, lhe vira as costas. E tudo isto por quê? Porque Ruth quis ser ela mesma. Ela queria ser feliz e não parecer feliz. Ela queria viver plenamente como mulher.
Existem muitas pessoas transexuais que sofrem preconceitos diariamente. Você pode enxergar estas pessoas como exemplos de força e superação por viver numa sociedade tão preconceituosa e moralista. Eu realmente não queria que estas pessoas fossem exemplos de vida pra ninguém. Sabe o que eu desejaria de verdade? Que estas pessoas fossem consideradas normais por todo mundo, assim como eu e você.
Saiba mais:
- O que é cissexismo? – Explica o que é cissexismo e sobre atitudes que temos no dia a dia que demonstram isso.
- Estranhossexual – Uma breve explicação sobre diferença entre gêneros
- Sim, você tem privilégios – Os privílegios que as pessoas cissexuais possuem e não se dão conta
- Bagunçaram o meu sexo – Em breve explicação sobre as diferenças entre gênero, orientação e identidade
Nota da autora: Este texto foi modificado para retirar termo ofensivos às pessoas trans*, tais como a adoção do nome escolhido pela personagem do filme, e termos como “mudança de sexo” e “sexo biológico“ e demais partes que se mostraram inadequadas à realidade trans*. Lamento por qualquer mal estar causado pelo texto e agradeço a Hailey, do SubiversiveOpenDiscourse, e demais pessoas trans*, pelas sugestões e críticas.