Texto de Daniela Montper*.
Para mim, tudo começou ano passado pelo twitter quando li sobre a SlutWalk de Toronto, Canadá.
Li várias notícias e artigos repercutindo a manifestação. A maioria criticando-a. Mas, pensei em como a passeata seria perfeita para o Brasil (e mais tarde descobri que mulheres de todo o mundo achavam o mesmo sobre seus países) por sua autonomia, por lutar contra a culpabilização das vítimas de estupro, por entender que a violência sexual ocorre por uma permissividade da sociedade que “ensina as mulheres a não serem estupradas ao invés de ensinar aos homens a não estuprarem”.
Sociedade que nos policia o tempo todo, nos julga e justifica as violências que ocorrem conosco: por nosso comportamento, por nosso vestuário, por nosso corpo ser simplesmente como é, o outro, diferente, marcado para o uso e deleite exclusivamente de “homens heterossexuais”. Afinal, eles são instintivamente predadores e nós as belas caças. E, enquanto uns acham que estupro é motivo de piada, vemos como uma violência cruel que precisa ser banida de vez. Então, nada melhor do que sair às ruas e gritar contra tudo isso. Foi o que me levou a participar da Marcha das Vadias no Rio de Janeiro e, junto com outras pessoas, continuá-la neste ano e nos que estão por vir.

A Marcha das Vadias carioca começou a ser planejada em janeiro deste ano, primeiramente reunindo pessoas via Facebook, que quisessem ajudar a construir a Marcha (inclusive a nível nacional). A primeira opção era realizá-la em março, pelo Dia Internacional da Mulher. Porém, por ser uma data muito disputada por partidos e movimentos de mulheres buscamos outra.
O mês de maio foi visto como perfeito para a mensagem por ser o mês das noivas e das mães, por ter o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e o Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna. Depois da data vieram o local, a hora, o itinerário e os temas através de várias reuniões de janeiro a maio, com participação de diferentes mulheres cissexuais, principalmente feministas e, de uma representante transgênera e prostituta. Porque assim a queríamos, diversificada, apesar de ainda não atingirmos o objetivo de alcançar as periferias da cidade maravilhosa.
Também organizamos debates em universidades e uma oficina de lambe-lambe, que tinham o objetivo de explicar os temas que abordaríamos, como: combate à exploração sexual de mulheres e crianças; o fim da MP 557; a legalização do aborto; a regulamentação da prostituição e o fim da lesbofobia/homofobia/transfobia, sexismo e racismo.
O tema da regulamentação da prostituição trouxe muitas divergências na construção da Marcha no Rio de Janeiro, o que nos levou a vários debates significativos. A manutenção do tema ganhou força e avançou às custas da saída de algumas pessoas insatisfeitas. Este é um ponto para refletirmos à parte, que deve voltar à discussão nas próximas Marchas das Vadias e no feminismo brasileiro.
No dia 26 de maio de 2012, em Copacabana, a partir das 13 horas já haviam diversas pessoas reunidas realizando confecções de cartazes e da faixa deste ano, além da mídia. Já contávamos com centenas de pessoas, quando por volta das 15 horas, fomos ocupar duas faixas da Avenida Atlântica para iniciarmos a Marcha. Nesse momento, dois guardas municipais vieram tomar a faixa de nossas mãos e dizer que devíamos ir para o espaço da ciclovia e do calçadão, o que não permitimos, pois temos o direito de nos manifestar na rua e não bloqueamos a avenida por completo, para não parar o trânsito.

Além dos guardas municipais não terem direito de avançar em nós, querendo nos intimidar, não deixamos que policiais e representantes da Subprefeitura fizessem o mesmo. Ainda que tenham nos mostrado pistolas de choque e feito ameaças, como no ano passado, como se houvesse apenas um maneira de o tumulto, por meio de violência, bombas de gás e armas de choque.
Ainda assim, seguimos pela Avenida Atlântica, gritando palavras de (des)ordem, pulando contra o machismo, protestando com nossas vozes e nossos corpos. Tivemos 2 mil pessoas de várias idades, etnias, sexos e orientações sexuais, gritando contra o que oprimia @ outr@, ainda que não a nós, porque “mexeu com um@, mexeu com tod@s”. Isso emociona. A empatia me emociona. Lutar ao lado dessas pessoas me deixa forte para aguentar o cotidiano em que ainda ocorrem muitas injustiças, de vários tipos.
Vários horrores que mostram como as pessoas são cruéis, se não para cometer a barbaridade ao menos para justificá-la ou minimizá-la. Como ocorreu com o Horror em Queimadas/PB, que ganhou a mídia por haver duas mortes, onde o estupro e a violência de gênero ganharam atenção menor, foram reduzidos a “o objetivo da ação era apenas o estupro, mas saiu do controle”. Gritamos porque não é esta sociedade que queremos. Usamos nossos corpos nos protestos porque são nossos, e de ninguém mais. Nem do Estado, nem do Legislativo, nem do Judiciário, tampouco das religiões. Não são propriedades públicas.
Foi nesse espírito de união que entramos na Rua Hilário de Gouveia, para seguirmos até a 12ª Delegacia de Polícia. Onde protestamos contra a violência institucional, a violência que as vítimas sofrem ao irem fazer denúncias de violência sexual, à impunidade e às declarações de um policial que afirmou num campus universitário em Toronto que: “não deveríamos andar com roupas de vadia se quiséssemos evitar ataques sexuais”. Foi isso que fez as Marchas das Vadias explodirem pelo mundo e sabemos que isso acontece no Rio de Janeiro, principalmente com as profissionais do sexo, nesta delegacia em particular. Próximo do local existe um ponto de prostituição de mulheres transexuais que não recebem atenção devida aos ataques que sofrem, porque são marginalizadas por nós, sociedade carioca hipócrita, são vítimas vulneráveis que raramente tem apoio da polícia.

Porém, no caminho da delegacia, vi um pôster imenso do Papa numa igreja católica, que não lembrava da existência e só chamou minha atenção, e das demais organizadoras, por causa da gigante imagem. Nesse momento, um grupo de manifestantes foi para as escadarias da igreja. Ao ver essas pessoas ali, gays e lésbicas se beijando, mulheres gritando: “direito ao nosso corpo, legalizar o aborto”, o que me veio à mente foram declarações de líderes da igreja católica sobre estupro e aborto.
Como o teste da caneta do bispo Dom Bergonzini, que também afirma que há “uma ditadura gay” em curso e que uma “conspiração da Unesco transformará metade do mundo em homossexuais”:
Não há mulheres verdadeiramente vítimas de estupro, diz o bispo na entrevista. Em alguma medida, todas consentem com a violência sexual. Para ilustrar seu julgamento moral sobre as mulheres e suas falsas histórias de violência o bispo faz uso de uma alegoria que provavelmente resume o que ocorre em seu confessionário: “‘Então, sabe o que eu fazia?’ Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. ‘Eu falava: bota aqui’, pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe”. Para o bispo, o orifício da tampa de uma caneta resume a verdadeira história das mulheres estupradas – uma mulher que não consente com o ato sexual “resiste ao encaixe do cilindro na tampa da caneta”. Ao serem confrontadas com a verdade da caneta, as mulheres desistiriam do aborto, pois o estupro seria uma mentira. A verdade da caneta por Debora Diniz.
Sim, no teste do bispo, a vagina da mulher é uma tampa e a caneta é o pênis do estuprador. Se a mulher não quer ser violentada, basta que ela não permita que a tampa encaixe na caneta. Simples assim. É com esta humanidade que Dom Bergonzini escuta, há 52 anos, como ele faz questão de enfatizar, as católicas violadas que buscam acolhida e compaixão na sua igreja. E então passam por uma acareação através do método da tampa-vagina e da caneta-pênis. O teste da caneta e o motorista gay por Eliane Brum.
Como a menina de 9 anos que foi excomungada, junto com a mãe e a equipe de médicos responsável pelo procedimento, por fazer um aborto que era fruto de estupros cometidos pelo próprio padrasto, além da gravidez pôr sua vida em risco. Como o bispo espanhol, Bernardo Álvarez, que justifica a pedofilia e os abusos sexuais sofridos por menores de idade, afirmando que há crianças que provocam. Fora todos os abusos sofridos por crianças e mulheres, cometidos pelos representantes desta instituição e acobertados no mundo inteiro.
Pensei também em como a igreja católica vem há milhares de anos matando mulheres em fogueiras e controlando nossas vidas e nossos corpos. Querendo nos subjugar a uma moral perversa e distorcida em nome de um suposto Deus. Apenas pensei que não era pecado o que Eva fez e sim insubmissão, pois pecado é o que eles fazem, crime é o que a igreja católica fez/faz por milhares de anos, então manifestantes entrarem nas escadarias de uma igreja que não paga impostos e é mantida por nós, cidadãos, e ainda assim invade nossas casas, escolas e corpos diariamente, merecia aquele protesto.
Merecia ouvir que ela não nos controlará mais, não sem luta. Então o que a mídia diz que foi confusão, eu digo que foi insubmissão. Não foi desrespeito, foi luta digna e sem violência, pois ninguém se machucou, ao contrário do que uma carola falou à imprensa, mostramos para os policiais que o vermelho em sua mão era tinta de manifestantes que ela estava empurrando das escadas. A própria polícia nos chamou para pedir aos manifestantes descerem das escadas. Pois, houve revolta sim, mas de nós pelas pessoas que saíam da igreja para nos empurrar. Houve mulheres mostrando os seios sim, mas elas já estavam com eles à mostra por todo o percurso. São seus corpos, seios não são ofensivos, ofensa é a igreja querendo mandar em nossos ovários e úteros. “Não vamos mais aceitar caladas”, foi o que vi, senti e louvei nas escadarias, junto de outr@s manifestantes que espontaneamente as subiram, sem qualquer intervenção das organizadoras.

Seguimos para a 12ª Delegacia de Polícia, onde fizemos uma encenação da Geni que leu um texto sobre a violência institucional contra a mulher e a conivência da sociedade. Foram minutos marcantes para mim, foi como lavar a alma ao ouvir a Geni responder toda a violência sofrida. E nada disso apareceu na imprensa… Seguimos para a Praça do Lido, no Posto 2 de Copacabana, onde as prostitutas transexuais e travestis fazem ponto. Fizemos cirandas feministas, protestamos com as palavras de (des)ordem e foram compartilhadas impressões sobre a Marcha, sobre a violência que sofremos pela polícia, sobre as 5 horas de manifestação, de protestos, de força e luta.
Cinco horas maravilhosas que fizeram a diferença na cidade que não é maravilhosa para as mulheres, devido a violência a que estamos expostas diariamente e à hipocrisia carioca que teve que nos ver e ouvir. E, ao mundo todo que não respeita metade da população por ter órgãos genitais diferentes, e de como foi uma manifestação vitoriosa que alcançou o mundo, levou nossas discussões às casas brasileiras. Seja para discordar ou não, as pessoas tiveram que ouvir sobre aborto, sobre ser vadia, sobre feminismo, sobre prostituição, sobre exploração sexual, sobre a culpabilização de vítimas de estupro, sobre a autonomia das mulheres, sobre como não ficaremos caladas ao termos nossas vidas controladas e nossos corpos invadidos e, de como depois do dia 26 de maio de 2012, mais pessoas sabem sobre a Marcha das Vadias.
É verdade, somos pautas em vários jornais e revistas, estamos avançando e não vamos parar até que nenhuma mulher seja xingada, violentada ou morta por ser o que quiser ser, por estar onde quiser estar, a hora que for, com a roupa que estiver. Eu quero fazer parte disto, quero transformar o mundo pelo feminismo. Não ligo se me chamarem de vadia, porque não tenho vergonha de ser livre e lutar pelo que acredito.
Que venha a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro 2013!
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*Daniela Montper é uma metonímia sinestésica. Um pleonasmo hiperbólico. Uma antítese paradoxal. Uma sínquise siléptica.