Aliste-se, inscreva-se, cerre fileiras, faça parte do contingente, junte-se a nós, venha conhecer, venha aprender, inclua-se.
A quantidade de possibilidades educativas à disposição da mulher impressiona. Não falo de escolas no sentido formal do termo, de instituições educativas tradicionais, nem da obtenção de graus acadêmicos ou de proficiências técnicas. Falo de oportunidades para que a mulher incorpore conhecimentos que supostamente estão faltando e farão uma diferença substancial em sua vida.
Essas informações estão em capas de revista, em chamadas de notícias de portais online, na programação televisiva, mensagens de spam, redes sociais, em todo lugar. Eu diria para você experimentar quinze minutos de navegação e reparar em quantas dessas chances imperdíveis você tropeça: um tutorial de maquiagem aqui, um apanhado de dicas infalíveis de sedução acolá, um guia para aprender a lidar com a selvageria do mercado de trabalho pero sin perder la ternura jamás, cursos de pole dance, pompoarismo, resgate da feminilidade, matérias cheias de “certo x errado” para se vestir direito.

Às vezes paro para pensar e fico com um pouco de medo de enxergar tudo com olhos excessivamente críticos. Afinal, qual o problema de oferecer informação que pode ser valiosa para que a qualidade de vida da mulher melhore?
Aí está a questão, não acho que sejam iniciativas que tragam informação efetivamente. Não considero esse tipo de informação útil (termo complicado…) ou necessariamente valiosa. O problema é que parte-se em geral de um pressuposto de que a mulher cissexual precisa ser educada, ou antes domesticada em sua aparência, seus desejos, seu modo de viver. E, imagino que sobretudo para mulheres trans*, seja mais difícil, porque talvez sintam mais a pressão para ser uma mulher “completa”, para se adequar ao que se prescreve e se vende como a forma legítima de ser mulher. Porque se não for desse jeito, meu bem, você não é mulher, não do jeito “certo”. E por isso precisa se corrigir, se instruir, se aperfeiçoar.
Um apelo ao “resgate da feminilidade”, tão “fundamental nesses tempos modernos em que os valores tradicionais se perderam” soa, ao menos para mim, como um rolo compressor que passa por cima de subjetividades, que instaura e legitima uma imagem-padrão da mulher que “precisa ser feminina”, e de uma forma preestabelecida. Precisa por quê? Para quê? E se não for feminina?
Existem mil maneiras de ser mulher e elas não são ensinadas em cursinhos, dos mais chinfrins aos mais caros e recheados de pseudocelebridades ofertando sabedoria e experiência. Outro erro está aí: a minha experiência em relação a uma questão tão particular — ser mulher — não é e não deve ser espelho para ninguém, porque ela vem de um contexto específico em que se desenrola a minha vida, ainda em andamento. Então, como eu chegaria nas pessoas para “ensinar” alguma coisa? (ah sim, vamos trocar o verbo tão alusivo a uma relação verticalizada por outro termo, “compartilhar conhecimento”. Beleza, se o conhecimento não é passado, é compartilhado, então um dos lados não deveria pagar e o outro não deveria receber por isso, não?).
Também tendo a enxergar um viés perigoso de submissão da imagem e da atitude femininas. Como se coubesse à mulher a posse de conhecimentos, truques, sortilégios e mumunhas para que aquela noitada seja inesquecível ou para que a casa fique sempre em ordem.
O homem, este ser portador de uma masculinidade-padrão que o torna passivo e desprovido de agência e que, como já aprendemos com o mercado publicitário, não consegue pensar direito à vista de um corpinho bonito vestido em lingerie sexy, deita na cama e aguarda ou se senta à mesa esperando que tudo seja servido/providenciado/proporcionado.
Se não é isso, por que há menos tutoriais, menos guias de comportamento, menos cursos de sedução para homens? Por que não há evocações para que o homem “resgate sua masculinidade”? Ainda que haja uma ideia, igualmente equivocada, de masculinidade dominante, não se ouvem os mesmos chamados que pedem que aquele indivíduo se eduque, se discipline, “aprenda”.
Evoco mais uma vez o antigo caderninho de economia doméstica da minha avó, encontrado em uma mudança. Nos longínquos anos 40 uma disciplina formal ensinava às moças de que é feita uma dona-de-casa exemplar, uma mulher decente, mãe e esposa valorosa. Vejam só que beleza garimpei lá:
Por excelente que seja a educação científica, literária e artística de uma jovem, ou a sua profissão, ofício ou negócio, não servirá ela para mulher casada (dona de casa) se não tiver os indispensáveis no matrimônio para governo de casa do que tudo quanto lhe possam ensinar nas escolas. O valor do dinheiro e a sua aplicação; o valor nutritivo dos alimentos, e a melhor maneira de os preparar sem desperdício ou prejuízos; o arranjo e a limpeza dos aposentos, o cuidado com os enfêrmos, a manufatura de bordados e peças do vestuário, a judiciosa distribuição do tempo, do lugar, do trabalho e do dinheiro são outros tantos temas capitais dos estudos e da aprendizagem para as aspirantes ao matrimônio ou a boa dona de casa.

Ficam faltando na lista acima as qualidades indispensáveis para que a mulher “cative seu marido”, mas truques de alcova jamais seriam ensinados às claras, em aulas formais. Até porque na época, ainda vigorava a ideia de que havia determinadas coisas às quais uma mulher direita não deveria se prestar. Porém, nada que a conversa informal com mulheres mais experientes não resolvesse.
Chamo a atenção para o fato de que é constante e atemporal a busca pela mulher “educada” e “instruída” da década de 1940. Mudou o que, afinal? Há mais “modalidades” disponíveis para a mulher que precisa aprender algo, da maquiagem ao sexo oral, mas permanece clara a noção de que não importam suas qualidades (como diz o trecho destacado do caderninho), ela é um ser incompleto e passível de correção, supostamente em busca de aperfeiçoamento contínuo.
A vida não admite recrutamento obrigatório. Não permita que te convoquem, que te disciplinem, que te digam o que e como você deve aprender e para quê. Inscreva-se no curso de dança sensual, se isso for lhe proporcionar deleite, prazer, realização pessoal, mas não atenda a imposições. Quem se educa é você, quem decide é você. E quem “se encaixa” é pecinha de Lego.
Você não é um pedacinho prefabricado, asséptico, inerte, liso e plano de plástico, é?
_________
Agradeço a Mari Moscou, Camila Gläser, Kika Del Piero, Maria C. Ribeiro, Alê Trindade, Lilian Borges e Aline Freitas pela leitura e pelos pitacos fundamentais.