Meninos que não choram

Nos ultimos dias conheci muitos meninos que não choram. Meninos que tem enorme dificuldade em derramar uma lágrima e, quando derramam sentem enorme vergonha… Meninos de 13, 14, 15 anos. São meninos que desde cedo escondem suas emoções. Fecham-se dentro de uma caixa que lhes é apresentada com todas as caracteristicas que devem adotar para “serem homens”.

Um desses meninos me disse essa semana que não quer ter filhas, porque ele não quer ser “fornecedor”, e que mulher tem a cabeça fraca. Esse menino “não chora” e para muitas pessoas é um ” cara insuportável”. Muitas passagens pela Delegadia de Polícia para Crianças e Adolescentes (DECA), resolve seus problemas na base da briga, algumas pessoas inclusive me recomendaram que não ficasse sozinha com ele, pois ele “não presta” e “vá saber” o que ele poderia fazer. J. (vou chama-lo assim) me contou que agrediu a primeira namorada, ele deveria ter uns 13 anos, a namorada não quiz fazer algo que ele desejava e J. a puxou pelos cabelos.

Alguns dias atrás, J. me procurou para conversar. Estava sozinha escrevendo algumas coisas, ele simplesmente entrou na sala, checou se eu estava sozinha, puxou uma cadeira, sentou na minha frente e começou a falar. Contou da primeira vez que foi detido.

Contou que estava jogando bola na rua quando a policia cercou e segurou todo mundo. Foi arrastado para um camburão junto com um amigo, levou 4 socos no rosto, o policial deixou claro que se ele o acusasse, a familia iria responder por isso. De lá, ele foi para o DECA algemado. Ficou horas sentado em um banco, algemado, sem comida, sem poder tomar agua e sem poder ir ao banheiro. Só foi permitido que ele fosse ao banheiro quando perceberam que estava urinando na calça. De lá, a justiça rápida entrou em ação, ele passa pelo juiz e vai cumprir “medida sócio educativa” limpando os banheiros de um centro comunitário. J. se envolveu em muitas confusões e brigas. Depois disso, foi arrumando meios de se proteger e sobreviver.

Após conversar muito sobre as experiências de J e, principalmente, ouvir suas historias, perguntei o porque da agressão à namorada, e porque ele achava que as mulheres tinham cabeça fraca. A resposta de J. foi de que as coisas eram assim, e ele tinha que fazer assim, falar assim, porque era assim.

Questionei mais um pouco do porque das coisas terem que ser assim e J. se mostrava surpreso. Falei sobre violência contra mulher, mostrei alguns indices e J. estava com olhos extremamente atentos. Nisso, ele me interrompe, e diz que não queria ter batido na namorada, não queria xingar a mãe, não queria nem bater nos colegas, mas ele tinha que fazer isso. O pai dele, quando ele era pequeno, deu uma grande surra em sua mãe, e chamou o J., que tinha uns 7 anos pra ver, porque com mulher as coisas se resolviam daquela maneira e “macho” agia assim. Enquanto conversavamos a cada 5 minutos, ele pedia desculpa pelo que ia dizer, e dizia, se confundia e pedia desculpa.

Foto de Jon Rawlinson no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Ao conversar com J., pude perceber o quanto ele se sente acoado. J. não quer bater na namorada, não quer agredir a mãe, mas ele se sente preso em um esquema que diz que sim, ele deve fazer isso. J., na verdade, gostaria de chorar. Ele conta que quando foi liberado, após sua primeira detenção, foi para casa mudo, se trancou no quarto e chorou, chorou muito. Porém, não podiam saber que ele estava chorando. Então, ele chorou sendo sufocado por um travesseiro. Ele era um menino de 13 anos, mas já não lhe era permitido chorar. E assim, J. vem crescendo. Hoje esta com 15 anos, e pela primeira vez parece que foi realmente ouvido.

J. não quer ser marrento, mas se ele não for, não sobrevive na sua rua. J. sente dor cada vez que pensa na ex-namorada, mas ele não pode demostrar seu arrependimento. J. queria chorar quando tem vontade, mas ele não pode. Onde J. pode buscar apoio? Onde J. pode conversar? J. poderia conversar com você?

Imagine, nós militantes, participando de alguma ação e se aproxima um menino com o perfil de J., talvez colocando que mulher tem que apanhar mesmo, será que pararíamos para conversar? Ou seguiríamos andando, carregando nossas bandeiras? Será que J. também é uma bandeira nossa?

Eu digo que sim. Intervir na realidade de pessoas como J. é algo fundamental se queremos construir uma sociedade mais justa, mais igual. Perceber as diferenças, se abrir para a sensibilidade, perceber o efeito das fortes amarras que nos aprisionam é fundamental para a liberdade de todxs.

Las cárceles, con muros, rejas y candados, son apenas la expresión más visible de un sistema que se encarga desde que nacemos, de aprisionar nuestra pasión, de encerrar en un len-guaje sexista y clasista nuestras ideas y sentimientos, de acallar nuestra indignación frente a un mundo que multiplica la barba-rie en nombre de la civilización, que expande la muerte en los territorios bajo su control, que nos arranca a jirones la sensibili-dad, despedazando nuestra piel y nuestros sentidos desde los grandes medios de incomunicación. Korol, Claudia (org.), 2007*

J. precisa conversar. J. precisa ser ouvido. Eu costumo dizer que agressor ou agressora não dá em árvore,  não brota do nada. Realmente acredito que boa parte das violações de direitos que vemos hoje, poderiam ser evitadas através de uma educação popular, não sexista, sem machismo, sem homofobia, lesbofobia e transfobia. E nós, militantes, devemos estar abert@s e atent@s para estabelecer esse contato. Para ouvir até aquilo que nos faz embrulhar o estomago, pois inúmeras vezes, por trás dessa postura agressiva, existe uma construção aprisionando os gêneros, aprisionando as pessoas e gerando como frutos, a dor e a morte.

Nós, militantes, devemos estar abert@s para encarar inclusive os preconceitos que alimentamos. Sim, muitas vezes também somos preconceituos@s.  Se J. tivesse aparecido na minha frente alguns anos atrás, com a postura que inicialmente ele apresentou, provavelmente eu teria o ofendido e virado as costas. Meu olhar não estaria atento e nem meus ouvidos abertos para perceber as particularidades de sua situação, de seu contexto. Não iria perceber suas dores. Acho que eu o chamaria de machista, agressor e iria querer que ele ficasse detido em algum lugar. Mas as coisas não são assim!

As pessoas precisam ser ouvidas, acolhidas e orientadas. Não em um sentido de “depositar um conhecimento” ou mostrar que tal caminho é o correto, mas orientadas em um sentido de compartilhar e construir juntos, de se colocar ao lado, como iguais, respeitando as diferenças e construindo um viver livre de amarras.

*Referência: Hacia una pedagogía feminista. Claudia Korol, 2007. (.pdf)