Um homem e o aborto das outras

Ontem, por alguma razão que desconheço, enfiei-me em um daqueles debates infindáveis de Facebook. O tema? Aborto. Não costumo participar muito dessas discussões. De maneira geral, nunca me parecem produtivas; ninguém muda de ideia, sempre rola ofensas pessoais pelo meio do caminho, passamos raiva e somos obrigados a ler um monte de coisas que consideramos besteiras. Mas sempre reflito sobre como silenciar-se pode ser apenas uma forma de concordar e dar ainda mais voz para o ‘outro lado’.

Como fazer para ser pai? / Foto por See Wah Cheng, disponível no Flickr, alguns direitos reservados.

Entre os vários argumentos levantados para defender a criminalização, em algum momento alguém levantou a bola: mas o pai tem direitos, o filho também é dele, a mulher não pode decidir sozinha. Como um homem que quer ser pai de seis filhos, já escolheu todos os nomes e pretende tê-los independentemente de ser um pai solteiro ou não, confesso que por certo tempo essa era uma questão em que eu escorregava. Por razões objetivas, eu nunca engravidaria uma mulher, mas sempre pensei em como me sentiria caso pudesse fazê-lo e ela escolhesse por abortar. Ela não queria ser mãe, mas eu queria ser pai…e, então, o que eu faria?

Durante muito tempo, questionei-me sobre isso. Nunca tive uma posição muito bem formada, mas era sempre um constrangimento e um desconforto muito grande pensar que, nesse caso, talvez, eu não defendesse o aborto tanto assim. Muitas vezes, provamos nossa coerência é nas subjetividades; e a minha subjetividade parecia estar sempre depondo contra mim. Em várias situações, julguei-me contraditório, mesmo que apenas em pensamento, uma vez que nunca cheguei nem a mencionar essa questão em debates públicos sobre o aborto. Nunca expus que eu poderia ser contra ele. Mas sozinho, e no meio das conversas sobre o tema, eu sempre pensava e me interrogava.

Comecei a procurar mais coisas sobre o tema, ler mais, ouvir mais, compreender melhor os argumentos. E as coisas começaram a ficar mais claras, e as respostas começaram a aparecer. Não tratava-se, necessariamente, de querer ou não cuidar de uma criança, criar, sustentar. A questão era um pouco anterior: era o simples fato de as mulheres quererem ou não submeter seu corpo a uma gestação. Obrigá-las a vivenciar isso, simplesmente porque eu, ou qualquer outro homem, queria ser pai, seria entender e tratar as mulheres apenas como uma simples incubadora. Como se o corpo dela devesse servir aos meus desejos de paternidade, independente de suas próprias vontades a respeito do seu útero.

“Pela descriminalização do aborto” / Foto por Laura Norton-Cruz, disponível no Flickr, alguns direitos reservados.

Para compreender melhor, tentei colocar-me no lugar. Pensei em como me sentia por ser tão difícil ter controle sobre o meu próprio corpo em relação às intervenções corporais que desejo fazer como parte do meu processo transexualizador. Todos os argumentos que já ouvi sobre o porquê de eu não poder fazer com meu corpo aquilo que quero, que julgo como mais adequado. São argumentos que não gosto de ouvir, que retiram de mim a autonomia para que eu mesmo diga quem sou, para que eu faça o que quero comigo mesmo. Soa-me como uma situação muito similar: o controle do corpo do outro por causa de suas próprias vontades, crenças e desejos, ignorando aquilo que este outro entende como melhor para si.

Por que iria, logo eu, dizer a qualquer mulher que seja o que ela deve ou não fazer com seu corpo? Afinal, na essência é isso: o que não desejamos fazer conosco, desejamos também proibir que o outro faça. Parece-me que nada nos dá o direito de agir assim. Se você não concorda, seja lá por qual motivo, simplesmente não faça. Mas a decisão deve ser individual, de cada mulher. Só cabe a ela dizer o que serve ou não para si.

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