(Esse texto é uma primeira tentativa de abordar, aqui nesse espaço, o tema da relação entre garantias penais e o discurso feminista, mais precisamente aquele presente nas redes sociais. Um esboço, uma primeira aproximação.)
Maria Lucia Karam escreveu, na década de 90, sobre os perigos de um discurso que ela denominou de “esquerda punitiva”. Segundo a autora, a utilização do discurso da solução penal por minorias, por vezes, se afasta do minimalismo ou do abolicionismo penal e, ao usar ou mesmo ao clamar por tal forma de solução de conflitos, se esquece de que o sistema de justiça criminal (SJC, para usar o termo de Vera Andrade) é em si violento e uma reprodução da “dominação e da exclusão”.
O texto é antigo e pode parecer deslocado em um blog como esse. Não mesmo. As palavras da autora (ainda que aqui ou lá possam ser objeto de alguns reparos ou críticas) se encaixam no discurso apresentado, muitas vezes, nas redes sociais, por grupos ou pessoas pertencentes ou representantes de minorias.
E, nisso, infelizmente, às vezes se encontram alguns discursos feministas.
Aviso, desde já, que além de feminista autora nesse blog, sou professora de Direito Penal/Processo Penal e é desse lugar de fala – “misto” que seja – que escrevo esse texto. De um lugar de fala que se preocupa com os discursos em caso, com os seus reflexos e com os seus equívocos.
Nas últimas semanas, por exemplo, um caso específico suscitou uma série de protestos, tuitaços, manifestações e posts em blogs, perfis do facebook e tumblrs. Os membros da banda “New Hit”, acusados de estupro, tiveram liberdade concedida por meio de habeas corpus. O ocorrido gerou o descontentamento de muitas pessoas, que clamavam por justiça, que reclamavam da impunidade, que comentavam o absurdo da decisão.
Não quero falar aqui do caso no sentido material – se houve ou não houve crime – nem mesmo discutir a gravidade de um crime de estupro – porque, por óbvio, como feminista, acredito não ser necessário dizer o quão grave considero uma conduta como essas, o quanto ela me revolta, me causa medo e, também obviamente, me leva a simpatizar – SEMPRE – com as vítimas.
Mas isso sou eu, mulher e feminista. Mas não posso ser ou pensar somente desse lugar. Isso não posso ser eu professora de Direito Penal. Ou nem posso assim ser eu – e nem ninguem – cidadã em um Estado Democrático de Direito. Como tal não posso – e continuo aqui ousando dizer não podemos – nunca concordar com “campanhas” contra a impunidade, embaladas por uma fúria punitiva que pede “cadeia”, confundindo prisão preventiva e condenação. Confundindo uma decisão em habeas corpus com impunidade.
Nossas causas, ainda que sejam causas da defesa de direitos fundamentais de minorias, não podem ser motivo para um retrocesso inquisitivo que transforma denúncia em sentença, prisão preventiva em condenação, revolta em presunção de culpa.
O processo acusatório, a presunção de inocência, o ônus da prova da acusação, etc são garantias constitucionais e direitos fundamentais assim como aqueles que, como feministas, defendemos. Não queremos, como mulheres e feministas, ser vitimas de violações de direitos. Mas também não podemos nos transformar em algozes dessas violações.
É preciso, então, situar melhor o discurso para longe dessa reprodução equivocada de um “clamor público”. Tanto nos incomodamos com os julgamentos midiáticos promovidos diariamente pelos grandes veículos de comunicação e, no entanto, quando esse julgamento está sendo feito aqui, por nós mesmos, pouco o enxergamos e pouco o criticamos.
De modo simples, basta ressaltar que a Constituição Federal estabelece que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
(…)
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
(…)
LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
Perdoem o excesso de reproduções de artigos de lei aqui em um post de um blog feminista. Parece-me, no entanto, fundamental estabelecer alguns conceitos aqui e, para isso, a citação da lei se faz necessária. Continuemos.
Reproduzindo o já esboçado na Constituição, o Código de Processo Penal estabelece quanto à prisão que:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.
§ 1o As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
E, ao tratar especificamente da prisão preventiva, dispõe que:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).
(…)
Art. 316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
É um erro imenso reproduzir esse discurso punitivista que passa por cima de garantias constitucionais e promove julgamentos instantâneos e extrajudiciais e somente serve a reproduzir violência e contextos de dominação e exclusão. Colocar esse discurso em questão não quer dizer opor-se à vítima, mas sim não admitir sejam deixadas de lado esses direitos estabelecidos como proteção para todos. Proteção que não é de um indivíduo contra o outro. Que não é de um nós contra eles, bandidos contra mocinhos, réus contra vítimas. Proteção que é, sim, para nós contra abusos e violências daquele que exerce o poder de punir.
Afinal, o SJC é violência. Institucional, que seja. Mas é, em si, violência. A função daqueles que pretendem debater, estudar, falar, discutir o Direito Penal (e processual penal) é justamente a de conter o poder punitivo, de conter essa força e essa violência reprodutora do contexto social capitalista, racista e patriarcal em que inserida. Por isso esse alerta, como que a pedir cuidado no discurso, ainda que seja – ou melhor, principalmente quando seja – o discurso ventilado nas redes sociais.
Há, assim, que se ter cuidado. Há um perigo de, ao se tratar da violência de gênero a que são submetidas as mulheres, não se levar em conta os avanços da criminologia crítica e do garantismo penal. Há uma dissonância entre essas duas instâncias de produção do pensamento – o garantismo e o feminismo – quase a constituir a tal da esquerda punitiva. E esse risco não podemos correr.