Elas foram feitas para o metal

Texto de Lyra Líbero*.

Em busca de exercer raízes de jornalista que vivencia antes de relatar, resolvi me aventurar no show de uma banda de metal extremo do cenário nacional, o Krisiun, que aconteceu na minha cidade (Campo Grande, MS) em setembro. Não foi meu primeiro show de metal, mas senti como se fosse. Sou mulher, jovem e adoro o som. Já assisti incontáveis shows de death e thrash metal. Já toquei, com a minha primeira banda (que tinha duas meninas na formação e durou um ano), sons como Slayer e Black Sabbath. Mas minha missão nesse show era mais do que estar entre as rodas de mosh. Fui como jornalista, cobrir o evento para um site.

Maysa Rodrigues, vocalista da banda Cauterization. Foto de Lyra Líbero.

Na noite de sábado, me preparei para um festival puramente masculino de sons rasgados. Ao entrar no bar, a constatação massacrante de que 70% das pessoas ali eram homens. Mas as meninas eram, em sua presença, muito fortes. Algumas com seus namorados. Outras, com grupo de amigos. Mas todas vestidas com especial diferença: corpetes apertados, calças de couro, botas pesadas. Maquiagem intensa, camisetas de bandas diversas, e um toque considerado inteiramente feminino: batom vermelho. Elas não eram maioria, no meio da massa de camisas pretas, mas eram um ponto marcante, uma presença diferente.

Quando me posicionei para ver a segunda banda da noite, sabia o que viria. Cauterization (Presidente Prudente, SP) tem Maysa Rodrigues no front, também guitarrista e, ela era a única menina a tocar naquela noite. Sua postura no palco é extremamente ímpar. Sua voz não deixa nada a desejar pra nenhum vocalista de metal, e o som da banda é coeso e interessante, como não poderia deixar de ser.

Ao subir no palco, alguns olhares de desconfiança seguem Maysa, mas logo desmoronam diante da performance impecável. Ela derrete preconceitos na base da voz gutural. “No começo, rolavam comentários machistas sim”, ela me contou mais tarde, durante uma pequena entrevista com a imprensa presente.

“Ouço muito essa pergunta: ‘Mas você é mulher, não é diferente tocar metal?’ e eu digo que não é. Não me sinto uma estranha no ninho, e não acho que exista mais preconceito, mas já passei por várias situações assim”. Para ela, o que falta são mais meninas tocando. “Acho que a gente é muito mais dedicada, até. E a resposta das meninas na plateia, ao som, é tão intensa quanto a dos homens”. Ela me explicou que com muita frequência, na estrada do metal, escuta meninas falando que têm vontade de tocar mas lhes falta coragem. “Eu incentivo todas elas a começarem, procurarem um instrumento e começar mesmo a tocar. É um desafio sim, mas porque não?”.

Na metade do show do Krisiun, encontro um grupo de meninas no banheiro. Elas não estão na fila pra usar os sanitários, estão curtindo o show ali. Pergunto o motivo: “No meio da bagunça, a gente acaba se machucando, os caras começam a se bater e a se empurrar e é complicado. Daqui eu vejo com segurança”, me responde uma delas. Pergunto quais são suas bandas favoritas, e elas respondem em uníssono: Arch Enemy. A banda sueca de death metal tem como vocalista a belíssima Angela Gossow, e logo eu reparo que muitos homens e mulheres estão usando camisetas do Arch Enemy. Pergunto o que mais elas gostam nas bandas de metal com mulheres cantando: “A força delas”, me respondeu uma delas. “Adoro o jeito forte e destemido com que elas cantam”, ouço.

Presença feminina no show do Krisiun. As mulheres que colaboraram com a jornalista estavam assistindo o show direto do banheiro, pra não serem empurradas na multidão. Foto de Lyra Líbero.

Uma das meninas me chama atenção em especial. A intensidade com que ela curte o som é muito visível. Ela é estudante, tem 23 anos, e me conta que gosta do som extremo desde os 13 anos, por influência do irmão. E o que mais me chama a atenção é a forma como ela define a jornada de uma moça que se arrisca a tocar metal: “Ela é muito mais cobrada, porque além de tocar e cantar bem, cobram que ela seja ‘gostosa’. Não importa se ela é muito boa, sempre precisa ser melhor do que o normal ou é julgada de uma forma meio cruel. Eu já quis tocar, mas desisti porque era difícil. Todo mundo olha com cobrança, tipo ‘ah, será que ela é competente? é mulher né’. É como se a gente estivesse no lugar errado, porque esse mundo é masculino. Porque tenho que provar isso e meu irmão, que queria tocar também, não tem?”. As meninas deixam o show de lado por segundos e aprovam o que ela fala com veemência: “É verdade”, me falou uma delas, “A gente tem sempre que provar tudo que faz”.

Despeço-me das meninas, saio do banheiro e me coloco a observar. Ao meu lado, uma menina linda, de rosto angelical e longos cabelos lisos “bate cabeça” ao lado de vários homens. Ela grita e ergue os braços. Para todo lado, a presença tímida das mulheres faz diferença, porque elas se unem pela música. Lembro então de uma frase que Maysa me disse no começo da entrevista: “Um dia, nós vamos tomar isso aqui. Lugar de mulher é no rock e no metal”. E eu concordo com um sorriso tímido. A gente foi feita mesmo pra estar ali.

Lyra Líbero

—–

*Lyra Líbero é jornalista, tem 23 anos e mora em Campo Grande/MS. Trabalha com assessoria de imprensa, escreve para revistas e se aventura em direção de arte. Também é música há 9 anos e blogueira no Menina Lyra. É apaixonada pelo Queens of the stone age, gatos e sorvete de pistache.