Dos privilégios que me compõem

Texto de Ana Rita Dutra.

Conhecer-se é fundamental. Eu me conheço? Não sei. Acho que em parte, mas na mesma parte talvez não me conheça. Meu feminismo é um bebê ainda, nasceu realmente a uns 4 anos atrás. É interessante, há dois anos atrás, eu considerava meu feminismo forte, imbatível, totalmente inclusivo, plural. E aos poucos fui descobrindo que plural, era só uma palavra que eu utilizava, minha realidade enquanto militante não era plural. Na minha cabeça, se eu falava dos direitos das mulheres, gênero, igualdade, isso significava que meu feminismo era inclusivo.

Mas ele não era. Meu feminismo não olhava para as especificidades, meu feminismo não olhava para a mulher enquanto mulheres em sua diversidade, não olhava para as relações sociais. Eu circulava por ambientes cheios de mulheres feministas, estas reconhecidas como mulheres, e não reconhecia uma série de desigualdades presentes nestes mesmos ambientes. E lhes digo: ainda, em muito, não reconheço.

Pensar em cissexismo? O que é isso? E assumo que tenho enorme dificuldade em problematizar sobre as realidades, por exemplo, da mulher transexual, homem transexual, travesti… Sempre trato a pessoa como esta quer ser tratada, mas venho a meses me cobrando um momento de estudo mais profundo sobre esses temas, e acabo deixando de lado, fica pra depois. E por que será que fica para depois?

Marcha das Vadias de Recife/2012. Foto de Tatiana Nascimento/Diário de Pernambuco.

Talvez porque isso faz parte dos “privilégios” que me compõem, talvez isso faça parte do meu comodismo, dos preconceitos que eu ainda carrego, e que muitas de nós ainda carregamos. E no meu caso, eu quero muito arrancar fora. Ter nascido e o médico dito: É uma menina. Ter sido identificada como mulher branca, apesar do meu pai ser negro, ter me apaixonado por um cara aos 20 anos e estar com ele em uma prazerosa relação até hoje (já fazem 9 anos..). Ok, não casei na igreja, no civil, não quero ter filhos, e isso as vezes me torna um monstro, mas eu sou heterossexual e isso me preserva de uma série de violências.

Nunca fui criticada por manifestar carinho pelo meu companheiro, nunca temi por minha segurança ao passear de mãos dadas por uma rua, nunca tive que lutar pelo reconhecimento da minha união, pelo meu reconhecimento como mulher. E só agora, aos 29 anos, começo a me questionar profundamente, começo a descobrir uma série de coisas sobre eu mesma, sobre minha origem, sobre o que me compõe.

Reconhecer estes privilégios, de forma alguma minimiza minha história, minhas lutas, minha realidade. Pelo contrário. Reconhecer estes privilégios, reconhecer os contextos das minhas escolhas e identificações, me possibilita ver além, me possibilita reconhecer o outro. Me possibilita perceber que falar em políticas públicas, falar em direitos, vai além do meu umbigo. Reconhecer os privilégios que me compõem não basta. Na verdade ele abre uma estrada, ou abre diversas estradas. Como vou seguir por elas? Não sei.

O que sei é que eu e meu feminismo estamos em constante construção e desconstrução. E isso é diferente daquele meu feminismo morno, que se contentava com uma falsa impressão de “igualdade”. Eu e meu feminismo precisamos aprender muito e, esse aprender passa pela desacomodação, passa pelo incômodo, passa até pela raiva.

Como vai seu feminismo? Como vai você e os feminismos? Essa é uma pergunta sincera pra você que esta lendo este pequeno texto. O que podemos fazer para trabalhar os nossos preconceitos e o nosso comodismo? Que o nosso feminismo, dito tão plural, seja realmente plural.