Marcha das Vadias: uma demanda de Direitos Humanos

Todos já sabemos o que é (o que são?) a Slutwalk. Se não sabemos, bem, já tem até verbete na Wikipédia, fora os inúmeros posts publicados aqui e em outros blogs feministas. As Slutwalk se espalharam pelo mundo, a partir daquela primeira Marcha Toronto, em abril de 2011, na velocidade que as redes sociais e os ventos da mudança permitiram. No Brasil, desde a primeira Marcha, em São Paulo, em Junho de 2011, inúmeras foram realizadas em Belo Horizonte, Rio, Brasilia, Porto Alegre, São Luiz, Campinas, Fortaleza, João Pessoa e outras cidades.

Por que, então, volto a falar aqui sobre a Marcha das Vadias?

Porque, além de um movimento social horizontal, sem líderes, organizado espontaneamente por mulheres no mundo todo, demonstrando que o feminismo vive e, que existem gerações de mulheres se encontrando e debatendo os problemas que ainda vivemos, devido ao controle social de uma sociedade patriarcal, marcando, quem sabe, uma nova onda de reflexões e conquistas, eu vejo a Marcha das Vadias como uma demanda de Direitos Humanos.

Slutwalk de Toronto (Canadá) 2012. Foto de Eric Parker no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Direitos Humanos, essa expressão vaga e tão mal compreendida.

Esse conceito que Dalmo de Abreu Dallari, constitucionalista, assim explica:

“A expressão “direitos humanos” é uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida. Todos os seres humanos devem ter asseguradas, desde o nascimento, as mínimas condições necessárias para se tornarem úteis à humanidade, como também devem ter a possibilidade de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse conjunto de condições e de possibilidades associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural de cada pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse conjunto que se dá o nome de direitos humanos.

Direitos Humanos são direitos e garantias que o indivíduo possui face ao Estado, esse ente ficticio que criamos para nos proteger de nós mesmos e das vicissitudes da vida em coletividade.

Assim, entender a Marcha das Vadias como uma demanda de Direitos Humanos, inserida em uma quinta dimensão, significa colocar suas propostas na pauta de debates e exigências a serem apresentadas para o Estado. Independente do atual ou futuro governo, o pleito de que as vítimas de estupro precisam receber atenção e proteção, significa impor ao Estado — no âmbito Federal, Estadual, Municipal e Distrital — que adote medidas concretas para proibir que seus agentes adotem o discurso de culpabilização da vítima.

Nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra foram criadas leis para proteção das vítimas de estupro, visando evitar que o comportamento anterior, da vítima com o estuprador, ou mesmo com terceiros, viesse a ser levado a julgamento, colocado diante do júri como tese de defesa do acusado.

Infelizmente, mesmo com a legislação de proteção, muitas vítimas ainda são culpabilizadadas pela violência nos julgamentos judiciais, e antes, muito antes, também sofrem com esse comportamento nas delegacias de polícia, ao registrarem o crime.

No Brasil, somente os crimes contra a vida são levados a júri popular. Os demais crimes, violentos ou não, são julgados, inicialmente, por apenas um juiz, togado, o Juiz de Direito, que deve ser imparcial.

No entanto, imparcialidade não se confunde com neutralidade. Toda a nossa formação nos impõe valores e conceitos que estarão presentes em todas as nossas decisões e julgamentos e, também o indivíduo juiz (ou juíza) estará sujeito a essa carga de valores.

Ainda existe no nosso Código Penal um artigo que diz respeito à dosimetria da pena (essa palavra ficou famosa agora, com o julgamento da Ação Penal 470 (AP 470), o “mensalão”, e faz referência aos critérios que o julgador ou julgadores irão utilizar para calcular a pena a ser aplicada ao réu condenado). Este artigo, o 59, fala em critérios como a culpabilidade, os antecedentes, conduta social, personalidade do agente,  motivos, circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima.

Assim, entendo que no Brasil, diante dessa legislação que não abre exceções, seria complicado a criação de lei que vedasse aos defensores a utilização do critério moralmente equivocado, mas judicialmente consagrado, de responsabilizar a vítima, buscando, se não a absolvição, ao menos a diminuição da pena aplicada.

No entanto, existem inúmeras outras formas de se evitar, ou ao menos diminuir, a utilização dessa estratégia mesquinha, estabelecendo debates e campanhas de conscientização e qualificação dos servidores da Justiça.

Ainda é inexistente, no Brasil, a divulgação de campanhas de apoio e acolhimento as vítimas de crimes sexuais nas Delegacias de Polícia e junto aos Batalhões de Polícia Militar, que são os primeiros a atender as vítimas de estupro. Faltam campanhas e cursos (obrigatórios!) para a qualificação no atendimento às mulheres vítimas de estupro. A mera existência de delegacias especializadas não impede, infelizmente, que o atendimento à mulher vítima de violência seja, no mínimo, precário.

Enquanto iniciamos uma proposta de levar aos órgãos competentes federais as demandas de criação de leis que limitem a utilização do recurso de culpabilização da vítima nos julgamentos, podemos, desde já, levar aos governos estaduais a demanda urgente de criação de campanhas para um atendimento qualificado por policiais, militares e civis.

Policiais são seres humanos, inseridos em uma sociedade que ainda divide mulheres entre “honestas” e “de família”, ou qualquer que seja o termo que se queira usar: vadias, periguetes, putas. Não somos livres de preconceitos. No entanto, enquanto agentes do Estado, atribuídos da responsabilidade de prestar serviço de proteção aos cidadãos, é preciso que estejamos atentos ao profissionalismo.

Vejo muitos e muitas policiais buscando alcançar o profissionalismo através de uma frieza e de uma falta de empatia com as vítimas, mecanismo este que reconheço como uma busca de proteção para a própria sanidade mental e emocional, uma vez que não recebemos qualquer tipo de capacitação permanente ou atendimento psicológico para lidar com as pressões e a frustração que encontramos cotidianamente na vida profissional. Cada um busca reagir de um jeito e, eu busco me envolver na militância. É doloroso, mas é a minha escolha.

No mês de outubro, foi publicado aqui umpost apontando as falhas no atendimento às vítimas de violência doméstica, em uma delegacia de polícia, supostamente especializada nessa área. Me senti mortificada com os termos usados, com a depreciação dos colegas  policiais, que não são meus conhecidos, pois atuamos em Estados diferentes. Porém, entendo, solidarizo e respeito a dor da vítima que veio neste espaço reclamar.

Campanha britânica do grupo Rape Crisis (England and Wales)

Só que ainda é pouco. É preciso que todas e todos nós saiamos do nosso lugar e busquemos medidas concretas para alterar esse quadro. Isso passa por campanhas, campanhas e mais campanhas. Como uma da Grã-Bretanha, chamada: “Drinking is not a crime. Rape is.” (Beber não é crime. Estupro é.).

Ou essa, do governo do Equador chamada: “Reacciona Ecuador, el machismo es violencia”.

Precisamos acionar as Secretarias de Políticas Públicas para Mulheres e levar nossas demandas. Precisamos nos aproximar das Polícias e dos policiais, para que essa demanda seja ampliada e atendida.

[+] Entendendo as leis de proteção às vítimas de estupro – Rape Shield Laws (em inglês).