Texto de Rayza Sarmento*.
Não deve ser fácil carregar a alcunha de “escritor latino-americano” nos dias atuais. Pesa sobre os ombros o nome e as letras de Gabo, de Cortázar e Neruda, só para citar algumas das estrelas de primeira grandeza. A literatura latino americana está sempre atrelada, na maioria, a homens, que tornaram esse pedaço do sul global, em especial o que não fala português, mais conhecido e amado aos olhos de além-mar.

É nesse cenário bastante masculinizado que Marcela Serrano nos apresenta sua prosa. Enredo envolvente, escrita impecável e metáforas que nos fazem querer grifar o livro a todo o momento se dispõem aos leitores do Albergue das Mulheres Tristes (1997), uma das obras da autora chilena. Marcela Serrano fala de mulheres, das dores que vieram com a autonomia feminina, da insegurança dos homens frente a essas novas mulheres em permanente guerra pela igualdade, seja nos postos de trabalho ou no amor. E passa, qualitativamente, longe dos textos- folhetins marthamedeirianos.
Floreana, uma historiadora, é quem solta o fio da narrativa. É na tentativa de recuperar-se de uma melancolia profunda que a escritora viaja para onde se desenrola a história. O albergue está incrustado em uma província no interior do Chile, mas tal ficção poderia ser o enredo da vida de muitas mulheres contemporâneas. Extremamente político, o romance não se declara feminista, mas vê-se em Elena, Floreana e nas tantas personagens um ativismo cotidiano, de quem não aceitou mais a subjugação; ao enfrentá-la, essas mulheres não lutaram apenas contra a violência e o desamor, mas contra um sistema que as quis frágeis e dóceis, e ainda não está preparado para receber as mulheres donas de suas próprias vidas. Elas, contudo, estão dispostas a construí-lo.
O Albergue de Marcela narra a tristeza frente à ausência da pertença. É por não conseguirem estar quietas no mundo e assimilar suas naturalidades tão preconceituosas e desiguais que essas mulheres se refugiam em um espaço físico e, ao mesmo tempo, imaterial. É onde buscam analgésico para dores da alma, partilham suas experiências e se tornam mais fortes. O romance nos lembra dos grupos de consciência do feminismo de segunda onda, a partir da década de 1960, quando, ainda em meio a ditadura, as mulheres sulamericanas se ajudavam mutuamente, tematizando suas vidas particulares, seus amores, seus corpos e o prazer… e ainda lutando contra os regimes militares.

Ainda que plenamente universalizável, o texto de Marcela Serrano diz das mulheres do sul global, de todas aquelas que não experimentaram um Estado paternalista e de bem-estar social, mas que conviveram com a ditadura e a crise como companheiras. Seu Albergue é habitado por mulheres comuns, de sofrimentos cotidianos, que tecem suas vidas sobre o peso de terem nascido mulheres em sociedades patriarcais, da casa à presidência da República. Lê-la é ampliar um pouco mais o enquadramento com o qual se fotografa a literatura latino americana.
Serviço: O Albergue das Mulheres Tristes de Marcela Serrano. Editora Record, 1997, 332p.

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*Rayza Sarmento é paraense, jornalista e mestranda em Ciência Política/UFMG. Pesquisa as relações entre mídia, política e gênero.