Texto de Hailey Kass.
O ano mal começou e já tivemos notícias de mulheres trans* (travestis, transexuais, transgêneros, entre outros) assassinadas pelo o que se convencionou chamar de transfobia (à revelia, no entanto, do termo homofobia que geralmente é utilizado pela militância gay para designar o mesmo).
Sabe-se do caso de Nicole e a abordagem cissexista da mídia, muito bem criticada por Daniela Andrade em: A morte e a morte de uma travesti.
Nessa Semana da Visibilidade Trans, gostaria de chamar atenção para algumas particularidades que envolvem certas violências, senão todas, direcionadas às mulheres trans*
Primeiro, o que é feminicídio:
é algo que vai além da misoginia, criando um clima de terror que gera a perseguição e morte da mulher a partir de agressões físicas e psicológicas dos mais variados tipos, como abuso físico e verbal, estupro, tortura, escravidão sexual, espancamentos, assédio sexual, mutilação genital e cirurgias ginecológicas desnecessárias, proibição do aborto e da contracepção, cirurgias cosméticas, negação da alimentação, maternidade, heterossexualidade e esterilização forçadas. Referência: Feminicídio: a morte de mulheres em razão de gênero por Cynthia Semíramis.
Acredito que muitos desses assassinatos configuram um tipo de feminicídio.

O breve e simples levantamento feito ano passado, em decorrência do Dia Internacional da Memória Trans sobre os assassinatos em 2012, apontou especificidades dessas violências que vão além da transfobia — termo que denota a aversão às pessoas trans*.
Nota-se que o agressor geralmente é homem e cisgênero, envolvido em algum tipo de relacionamento com a vítima. Por isso, sugiro que muitos assassinatos configuram feminicídio — porém um tipo diferente do designado por Semíramis, pois existem certas questões especificas e/ou divergentes, como a vulnerabilidade dessas pessoas (muitas trabalham como profissionais do sexo, ou são percebidas como tal) proveniente de uma estrutura cissexista que as coloca à margem da categoria de humano.
Há falta de acessos a todas as instituições sociais, desde o ensino (básico, inclusive — Berenice Bento sugere que muitas pessoas trans* entram no censo de “evasão escolar”,quando, na verdade, dever-se-ia listar como “expulsão escolar”) até atendimento médico, jurídico, enfim, acesso aos serviços e instituições básicas de auxílio e formação do sujeito social. Sabemos, inclusive, que a própria polícia muitas vezes encarrega-se de perpetrar a violência.
Segue que também existem relatos de mulheres trans* vivendo em relacionamentos abusivos, onde seus parceiros utilizam violência física e verbal. Todos esses elementos culminam numa cultura altamente cissexista, uma estrutura de opressão onde não há expectativa de ajuda.
Dessa forma, o caso de Nicole, por exemplo, que foi assassinada por seu namorado, parece ser um exemplo claro disso. Vemos que a motivação do crime parece ter sido a “humilhação social” na qual o namorado se encontrou, pressionando-o em direção à norma heteronormativa. O assassinato era a única forma de “higienizar” sua heterossexualidade.
Essa estrutura encarrega-se de designar que mulheres trans* são menos mulheres, menos humanas, do que as mulheres consideradas “verdadeiras” ou “originais”. A vida dessas mulheres está sempre por um fio, basta apenas “atestar” sua “falsidade” — os amigos do namorado de Nicole “descobriram” que ela era trans*, descobriram, portanto, que ela não era “real”. “verdadeira”, “original”, e também o famoso “biológico”. São todos termos que indicam que há, incontestavelmente, pessoas que possuem um gênero legítimo e outras que não. Pessoas que possuem uma “biologia verdadeira” e outras que não. Os discursos, que constroem a legitimidade de certos corpos e a deslegitimidade de outros, são os mesmos que levam à violência contra pessoas trans*.
Nessa Semana da Visibilidade Trans, convoco todas as pessoas que acreditam em nossa humanidade, em nosso direito de habitar o mundo¹, a lutarem contra as estruturas que ainda nos relegam como pessoas de segunda categoria, menos verdadeiras, menos reais e por isso, passíveis de violência.
¹ Conceito de Judith Butler, originalmente Livable World, traduzido para o espanhol como “Habitar El Mundo”.
Autora
Hailey Kaas é uma mulher trans* demi-bi/panssexual transfeminista. Bloga sobre Feminismos, Transfeminismos, Gordofobias, Racismos, Bissexualidades/Pansexualidades e Sexualidades não-binárias, Acessibilidades e outros elementos de Justiça Social.