Texto de Luciana Nepomuceno e Thayz Athayde.
As amazonas são bem conhecidas no universo cultural-pop ocidental. Figuram na Ilíada, tem papel fundamental no livro ‘O Incêndio de Tróia’ de Marion Zimmer Bradley, são referenciadas nas séries da Mulher Maravilha e Xena. Até em Hércules, animação da Disney, elas dão o ar de sua graça. Na mitologia grega eram uma tribo exclusivamente de mulheres que, em algumas versões, mutilavam um dos seios para melhor manejar os arcos. São parte do nosso imaginário: mulheres guerreiras.
Os gregos não são os únicos a terem mulheres guerreiras em seu repertório cultural. Elekô é o nome de uma sociedade secreta de mulheres africanas que são lideradas por Obá – orixá guerreira que representa as águas revoltas dos rios, controla o barro, aguá parada, lama, lodo e as enchentes. Uma Orixá energética, temida e forte, considerada mais forte que muitos Orixás masculinos, vencendo na luta: Oxalá, Oyá, Oxumarê, Exú e Orumilá. Obá representa as mulheres e concentra funções sociais, políticas, culturais e religiosas.
Aqui no Brasil também temos nossas representantes no folclore: são as Icamiabas ou Iacamiabas (do tupi: i + kama + îaba, significando “peito rachado”). Nossa tribo de mulheres que não aceitavam a presença masculina e constituíam uma sociedade rigorosamente matriarcal e eram boas de briga.
Porém, os exemplos de mulheres que não se inibiam de pegar em armas para sua própria defesa, para defesa de outras mulheres ou para defesa de terras e valores, não se extinguem na mitologia. É na História que encontramos Joana d’Arc, heroína da Guerra dos Cem Anos, comandante do exército francês com aproximadamente 17 anos e que morreu queimada pouco tempo depois. Além de libertar Orleans, Joana comandou o exército e venceu a batalha de Jargeau, a batalha de Meung-sur-Loire e a batalha de Beaugency.
Outra boa de briga era Boudicca, rainha celta que liderou os icenos contra as forças romanas que ocupavam a Grã-Bretanha em 60 ou 61 d.C., durante o reinado do imperador Nero. O marido de Boudicca tinha se tornado aliado do Império mas, com sua morte, os romanos ignoraram o testamento e se apropriaram dos bens do rei dos icenos. Quando houve protestos, os romanos tentaram controlar a situação açoitando a rainha e violando suas filhas. Boudicca reergueu-se unindo e comandando várias tribos contra o domínio romano. Ficou conhecida como uma guerreira feroz, estratégica e fria, exterminando os adversários sem fazer prisioneiros.
E, como o Império Romano não era bom em fazer amizades, também na Síria uma mulher se tornou guerreira e líder para combatê-lo. Zenóbia é reconhecida como portadora de virtudes guerreiras, administrativas e intelectuais, transformando Palmira, sua capital, em uma referência no Oriente Médio e, posteriormente, tendo expandido seu domínio do Nilo ao Eufrates, reinando sobre o Egito. Seu governo durou cerca de cinco anos, até que os romanos se reorganizaram e a venceram em batalha.
Tão corajosas quanto, mas um pouco menos conhecidas, são as vietnamitas Triệu Thị Trinh e as irmãs Trung. Triệu Thị Trinh foi uma guerreira do séc. III que ficou órfã, viveu como escrava até os 20 anos, fugiu para a floresta e organizou um exército com cerca de 1000 guerreiros que libertou uma área do Vietnã do domínio chinês e venceu cerca de 30 batalhões Wu. As irmãs Trung são consideradas heroínas nacionais no Vietnã. No ano 40 d.C., formaram um exército de 80 mil pessoas comandados por 36 mulheres-generais, incluindo, entre as líderes, a mãe delas. Elas conseguiram manter o Vietnã livre do domínio chinês por 3 anos, rechaçando todas as tentativas do exército inimigo de recuperar espaço.
Cada uma dessas mulheres, para ser quem foram, tiveram que romper com o discurso “mulher não faz isso”, “mulher não é assim”, “isso não é coisa de mulher”. Cada uma delas deu de ombros para a dicotomia homem/mulher e declararam, via ações, que o combate é um território a ser ocupado por homens e mulheres conforme seu desejo e necessidade. Para ser quem foram, guerreiras e líderes, cada uma delas ignorou o papel que as “mulheres de verdade” deviam exercer. Para serem quem foram e serem lembradas, elas se recusaram a resumir-se no que era definido como “feminino”. Porque enquanto ouvimos e acatamos a ladainha de um tipo ideal de feminilidade – o que quer que ela abarque, da antiga definição de dona de casa à de mulher liberada e independente – ainda somos subjugadas e enquadradas.

Todas as vezes que nos limitamos ou nos limitam com a expressão (explícita ou não): “isso não é feminino”, estão convocando um padrão de mulher que opera mantendo o status quo, na qual a mulher será construída pela descrição do que é ser mulher, não apenas nomeando, mas constituindo o que é ser mulher. Isso se torna mais visível quando voltam essa afirmativa para as lutas feministas, criando um manual do que as feministas devem fazer para que sejam autorizadas a militar. Para isso, devem militar totalmente vestidas, se ousarem mostrar seus corpos que eles sejam magros, depilados e padronizados. Além disso, exige-se que sejam menos ríspidas, barulhentas, agressivas ou qualquer dos termos que pululam no discurso domesticador, inclusive o infame “feminazi”.
“Porque, olha, quer reinvindicar seus direitos, tudo bem, mas faça isso com jeitinho e educação como militante Fulana ou Beltrana”. É o discurso cínico que, fingindo valorizar um tipo de luta, visa enfraquecer as reinvindicações desautorizando quem as apresenta.
A militância não prescinde do diálogo, da gentileza, da prática pedagógica. Mas isso não quer dizer que cada militante não o exerça na medida de sua história e possibilidade. Não se milita com mais ou menos “educação” porque se é mulher. Milita-se da forma A ou B conforme a relação com a realidade e embates cotidianos forjam as posturas e discursos. A militância não é um lugar exclusivamente para homens ou que demanda comportamentos masculinos, mas um espaço que deve abranger todas as formas de reivindicações por direitos das minorias.
Não temos que ser delicadas por sermos mulher. Não temos que falar baixo por sermos mulher. Não temos que ser doces, suaves, mansas, pacientes e tolerantes. Não temos que. Escolhemos. Optamos. Agimos. Fazemos acontecer. Porque ser mulher não tem forma. Feminista não tem padrão. Guerreira não tem modelo.
[+] Podem me chamar de barraqueira, não vou contemporizar por Niara de Oliveira.