Lindas mulheres mortas

Texto de Madeleine Lacsko.

Pela primeira vez um julgamento é transmitido ao vivo em vídeo e na íntegra no Brasil. Mércia Nakashima, advogada, 28 anos de idade, sumiu no trajeto entre a casa da avó e a própria, depois de um almoço de família. Seu corpo foi encontrado trancado no carro, dentro da represa de Nazaré Paulista, no interior de São Paulo. O principal suspeito é o ex-namorado, também advogado, ex-policial, Mizael Bispo de Souza.

O caso começou como segredo de justiça que a própria Justiça, em dado momento, tratou de trazer às luzes. Tornou-se o julgamento mais público da história do país pelo esforço de uma mulher lutadora e divertida, mãe, avó, jornalista e responsável pela comunicação do Tribunal de Justiça de São Paulo: Rosângela Sanches.

Ela concluiu com sucesso a missão de convencer o Judiciário a tirar as paredes de um julgamento de grande repercussão. Quis aproximar a Justiça das pessoas, mas o resultado também tem mais que isso: agora todo mundo pode ver, ao vivo, como se lida no Brasil com um caso em que a mulher morre e o antigo companheiro é o principal suspeito. Basta clicar neste aplicativo da página do TJSP no Facebook e as câmeras mostram.

Nós e os Tribunais

A Justiça de portas fechadas tem funções diferentes da Justiça de portas abertas. O primeiro julgamento filmado para o público é o do Tribunal de Nuremberg, iniciado em 1945. Pela primeira vez houve a preocupação de se montar uma estrutura completa de imprensa. Na época, as filmagens eram retransmitidas em cinemas pelo mundo e geraram imagens para gerações não esquecerem.

Temia-se, ao final da II Guerra Mundial, que o estardalhaço servisse para criar um palco de defesa das ideias dos nazistas julgados. Eles falaram, foram ouvidos, filmados e condenados não só pelo Tribunal Militar Internacional, mas pela humanidade. A ideia de dar publicidade àquele julgamento era justamente a de não deixar que algo assim se repetisse.

Guardadas as devidas proporções, principalmente porque no caso brasileiro ainda não temos um culpado do crime, temos uma oportunidade única de saber como é tratado na prática um caso de assassinato de mulher quando se suspeita ser responsável o homem com quem ela teve um relacionamento.

O mais importante disso é saber que um julgamento desses pode ter recurso e que a reação das mulheres pode ser determinante para um desfecho mais justo em alguns casos e menos injusto em outros. Em 2006, entrevistei Doca Street depois de ler as quase 500 páginas autobiográficas sobre o assassinato da companheira Ângela Diniz e a vida na cadeia, o livro Mea Culpa.

O julgamento dele, em Cabo Frio, foi o canto do cisne infeliz de um grande jurista brasileiro. Evandro Lins e Silva encerrou sua carreira vencendo com a criação da tese de “legítima defesa da honra”. Ou seja, quando o homem se sente enganado, pode matar, é como defender-se de uma ameaça real de morte.

Ângela Diniz foi descrita pela defesa como uma “vênus lasciva”, movida a cocaína e álcool, que merecia ser morta. Os jurados concordaram. Doca Street contou que saiu aplaudido do tribunal mas tinha vergonha, sabia que não era nada daquilo. Os dois abusavam de álcool e cocaína e tinham a mania de carregar armas, o crime ocorreu neste contexto. Mas ele, livre, era aclamado nas ruas e ganhou uma legião de fãs enlouquecidas.

Doca Street atribui a reversão de seu julgamento um ano depois ao barulho que as feministas fizeram na mídia e nas ruas. Em 2006, depois de cumprir seus 15 anos de pena — 3 deles em regime fechado — considerava que a condenação foi justa e que foi melhor para a sociedade tudo ter sido decidido daquela maneira, dizendo que homem não pode matar mulher.

Manifestantes pedem a condenação de Mizael Bispo em frente o fórum de Guarulhos. Foto de Werther Santana/Estadão.
Manifestantes pedem a condenação de Mizael Bispo em frente o fórum de Guarulhos. Foto de Werther Santana/Estadão.

O que ela fez para ser morta?

O Brasil da década de 1970 tem um traço em comum com a de hoje: antes de tudo, tenta descobrir o que a mulher fez para merecer ser assassinada. Confesso que não tenho estômago para buscar de novo e colar aqui os comentários feitos na internet sobre a condenação do goleiro Bruno. Para quem tiver coragem, aqui tem um prato cheio: fan page do condenado.

Ele foi condenado a 22 anos de pena total, a menor parte na cadeia. Eu nunca vou engolir que não se dê a pena máxima para uma pessoa que sequestra uma mãe e seu bebê, arranca o bebê dela, espanca, mata, esquarteja e dá para o cachorro comer. Não consigo entender o que alguém precisa fazer para receber pena máxima se isso não for o suficiente.

É assustador ver pessoas que parecem comuns, dessas que a gente tromba todo dia na rua, no ônibus, no mercado, julgando a vida sexual da moça e achando muito certo um cara matar a mãe do próprio filho para não arcar com as responsabilidades na criação dele. E talvez seja mais assustador o silêncio, a falta de protesto pelo fato de não ter sido pena máxima. Quanto nós realmente mudamos de 1976 para cá?

No caso de Mércia Nakashima, temos a oportunidade única de saber realmente o que se passa dentro das paredes de um Tribunal. O que se fala da vida da vítima, o que se questiona tecnicamente, como as testemunhas reagem, como as pessoas se defendem, o que exatamente os jurados votam. Ainda não sabemos se o ex-companheiro é culpado, mas podemos saber como se conclui pela culpa ou não.

Vamos tentar?

Proponho um desafio a todas nós: vamos deixar de lado todos os nossos preconceitos contra a Justiça. Dedique 10 minutos do seu dia para ver este julgamento, que seja um minuto em homenagem a cada uma das brasileiras que vai ser assassinada no dia de hoje (dado do Mapa da Violência do Instituto Sangari).

Vamos, em homenagem a elas e a todas nós, aproveitar que a Internet existe e compartilhar nossas experiências. Espero o comentário de vocês. E espero mais ainda o dia em que seja só uma página do passado a época em que se procurava no comportamento da mulher o motivo para ela receber a pena capital num país que não dá nem pena máxima de prisão a assassinos.

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Ps.: O título “Lindas mulheres mortas” é gentilmente roubado de um dos vários livros do Poeta Álvaro Alves de Faria, colega querido demais, que sempre defendeu minhas reportagens feministas na Jovem Pan.