Texto de Letícia Zenevich.
Hoje de manhã, passei no mercado para pegar duas, três coisas. Quando fui pagar, Andrea, a caixa, olhou para o meu sabonete íntimo Intimus Gel, em promoção por treze pilas, e me perguntou o que achava dele, porque o dela não funcionava muito bem e às vezes causava uma certa coceira. Ela falou na maior naturalidade, autenticamente interessada no assunto.
Eu, que me considero feminista porque acho tosco que alguém não o seja, que acho que manjo um pouquinho dessa coisa toda de dinâmicas de gênero, que vou a várias conferências, faço minhas pesquisinhas e, de vez em quando converso com crianças e adolescentes em escolas, de repente estava constrangida com a possibilidade de discutir com uma desconhecida sobre o asseio da minha vagina.
Ao mesmo tempo, claro que fiquei puta da cara comigo mesma por me envergonhar, meu lado patriarcado e meu lado feminista num embate sem nuances no meu rosto, enquanto eu tentava responder com atenção as questões da Andrea sobre minha higiene genital. Tu acha bom? Tu sempre usa esse? Funciona? O dela não funciona muito bem.
Nesse embaraço, eu ali, completamente desprevenida, sendo perguntada sobre a eficácia da lavagem da minha vaginal, sem saber o que responder: o que “funcionar” quer dizer? Queria uma resposta prática. Também queria sumir. Disse que funcionava melhor que sabonete normal, que às vezes me irritava, mas não consegui ir além, falar o que realmente penso, no quão brutal e misógino é um sistema que permite que o sabonete de banho seja produzido de uma maneira incompatível com o Ph da vagina. Lembrei da explicação de um amigo quando conversei com ele sobre isso, sobre a razão do sabonete normal às vezes ser meio maligno e da gente concordar que jamais uma indústria fabricaria um sabonete que irritasse o pênis — seria um escândalo na hora. Mas agora irritar a vagina, tá tranquilo, vai lá sabonete, ninguém se importa com a vagina, vai ficar fedorenta de novo mesmo KKKK HUMOR NÃO OFENDE.

Agora é fácil falar, né? Mas ali, na hora, com uma pessoa concreta me perguntando a respeito disso, só queria me virar, largar meus legumes congelados, meu Intimus Gel e sair correndo até me sentir novamente segura na mudez cordata do patriarcado. Porém, pensei na frase manjada da recém-falecida Dama de Ferro, por conta da controvérsia pelo Femen BraZil tê-la homenageado, this lady is not turning. Pela primeira e única vez, Thatcher fez sentido para mim: fiquei parada, tentando murmurar coisas com algum sentido remoto, o rosto impassível.
A sensação de ser uma baita feminista de araque, incapaz de manter um diálogo casual sobre o aprumo da minha vagina com uma desconhecida foi óbvia e brutal. Sorri, agradeci e me virei correndo, malzaê: THIS lady is turning; esquecendo completamente de pegar a nota fiscal e o tíquete do estacionamento. Dei uma meia-volta torta para pegar as duas coisas, sorrindo e saindo correndo, depois tentando dar marcha ré no meu carro sem puxar o freio de mão, tamanho foi meu embaraço.
Na minha vergonha primordial e na vergonha secundária, suscitada por ter sentido a vergonha primordial, lembrei dessa guria de quinze anos que manja muito de feminismo, a Tavi Gevinson, que falou algo que sempre senti e nunca soube expressar. Ela diz que muita gente se sente distanciada do feminismo porque as feministas parecem às vezes umas ‘Mulheres-Maravilha’ que nunca hesitam, que nunca têm dúvidas, que nunca teriam vergonha de conversar sobre sabonete íntimo, enfim, mulheres absolutamente distantes desse grande bolo de hesitação e confusão que sou o tempo todo.
Fez sentido. Geralmente me sinto dois degraus aquém do que o feminismo merece, por tudo que ele fez por mim. Me sinto incapaz de falar de igualdade, quando tem dias em que deixo os comentários sexistas passarem, sabe, who has the strenght anymore? Tem dias em que só quero entrar numa clínica de paredes brancas e enfermeiras sorridentes e sair de lá com um peitão, trabalhada na heteronormatividade. Sonho com o dia em que meu nariz será outro.
Não acho que quem muda o corpo não pode ser feminista, mas isso escapa também do meu arquétipo de feminista ‘Mulher-Maravilha’, que se sente extremamente linda e confortável em seu próprio corpo. Me sinto mal, porque às vezes, sabe, engulo enraivecida algum comentário LGBTTfóbico de algum flerte, porque só quero sexo mesmo, deixa assim, não vou casar com esse machistinha sujo, então não tem problema.
Me sinto um lixo porque nesse domingo fui tomar café antes do protesto contra o Feliciano, e o tempo passou e a conversa estava boa e nunca fui. Feminista? Que nada, uma grande farsa burguesinha, falando em direitos iguais para iguais, não lidando suficientemente bem com todas as transversalidades, não voluntariando tudo que poderia, não sendo tudo o que poderia, sendo incapaz de escrever aqui com @, X ou *, porque ainda me parece estranho, embora aplauda essas tentativas. Como feminista, me sinto um fracasso, enfim, uma garota da laje que não faz o requisito. Jamais.
Essa blogueira, a Tavi Gevinson, olhou nesse mais fundo de mim e acertou em cheio. Eu me considero, às vezes, insuficiente para o feminismo. E ela me ensinou a perceber que o feminismo deve ser feito de mulheres, não de heroínas, deve estar enraizado no cotidiano, não em mitos. Claro, nossas divas devem ser lembradas, são fonte de inspiração, mas não podem, por outro lado, serem tomadas como o modelo último e acabado de feministas, muito menos como figuras superficiais, sem todas as complexidades que todas nós temos – a insegurança que aparece em alguns escritos da Simone sobre a relação com o Sartre, o amor enlouquecido da Camille pelo Rodin ou da Frida pelo Diego. Isso não as diminui, pelo contrário, aproxima-as da gente e, para mim, torna-as ainda mais geniais: apesar de toda essa batalha interior, ou devido à ela, foram grandes. E, afinal, não precisamos tanto de heróis e de heroínas se estivermos todos juntos. Chega de tanta pressão, pouco importa o que tu faz do teu corpo ou da tua vida, querer igualdade, ser feminista não tem regras precisas ou um check list inalcançável.
Meu lado patriarquinha Disney me faz acreditar que amor existe sim, e me vem à tona a frase que meu professor francês de estudos de gênero disse uma vez: o amor é um movimento social a dois. Mais gata em francês, claro: l´amour est un mouvement social à deux. E isso me basta por agora, porque é óbvio que não existe dois quando se soma um e um meio. Não existe amor quando os dois são considerados meio. Não existe amor fora da igualdade, e não existe igualdade fora de um transfeminismo social. Se acredito nisso, está bem. Sou feminista, envergonhada de vez em quando, bem-lavada com Intimus gel em uns dias e toda menstruada com calcinhas velhas em outros. Uma bagunça na maior parte do tempo. Mundana, banal, e capaz de mudar as coisas. De amar e mudar as coisas.