Com que roupa eu vou?

Texto de Maíra Kubik.

Saiu pela rua com um vestido curto — dois palmos e três dedos acima do joelho, para ser mais precisa —, um par de botas de cano alto e meia calça preta. Fechou o portão do prédio e começou a caminhar a passos largos e cara de poucos amigos, como sempre fazia. Passou por um grupo de quatro adolescentes que conversavam animadamente. Nenhum deles a olhou. Estranhou.

Quando chegou até a esquina, tinha um punhado de gente esperando o farol fechar para atravessar a avenida. Havia um homem grisalho com uma pasta de couro gasta, dois executivos de terno e alguns rapazes, a maioria com mochilas nas costas. Ninguém encarou-a. Nadica de nada.

Marcha das Vadias do Rio de Janeiro/2012. Foto de Guillermo Giasant/UOL.
Marcha das Vadias do Rio de Janeiro/2012. Foto de Guillermo Giasant/UOL.

Continuou seu trajeto para o centro da cidade. Ao longo das quadras, a sensação de invisibilidade permanecia. Estava pegando gosto pela coisa. Seria mesmo possível chegar até a praça principal sem ouvir nenhuma cantada? Ou sem perceber ninguém entortando o pescoço para descaradamente encarar sua bunda? Nenhum fiu-fiu sequer? Gostosa? Ô lá em casa? Delícia? Tchuchuca? Não, não. Será?

Cruzou mais um grupo de pessoas e… seu corpo continuava ileso, tal qual havia sido visto pela última vez no espelho de casa. Ninguém — repito, ninguém — mediu-a de cima para baixo. Peito, madeixas, boca, tudo intacto. Se soubesse, teria passado aquele batom vermelho que comprou há meses e nunca teve coragem de usar!

Começou então, ela, a reparar nas outras pessoas. Uma vinha com o cabelo rosa. Outra com um shortinho bem enfiado, cheia de piercings e uma meia arrastão. Tinha ainda uma de minissaia e pernas de fora, mesmo com um frio de lascar. Avistou um todo de laranja. Chineses, indianxs, nigerianxs, ingleses. E nada de seu olhar curioso ser correspondido. Ninguém parecia se importar com a aparência alheia e, mesmo que se importasse, não transparecia isso de maneira acintosa.

Quando atingiu seu destino final, estava chocada. Estupefata. Emocionada. Não se sentira violada ou desrespeitada, algo bastante recorrente em outras épocas e lugares. Nem ficara com medo de ser abordada indevidamente, bolinada ou até mesmo estuprada, como já havia ocorrido, em especial nas ruas pouco iluminadas de sua cidade natal à noite. E, melhor do que tudo isso, respirou fundo e livre. Muito livre. Um peso havia saído de suas costas. Seu corpo era seu! (E temporariamente de quem escolhesse para compartilhá-lo)

Claro, o mundo ainda tinha um milhão de problemas a resolver e um bocado de revoluções a serem feitas e refeitas, mas pelo menos uma das correntes que a prendiam havia se soltado. Já podia se movimentar um pouco mais, dar pulos de alegria e, quem sabe, até correr mais rápido para o horizonte almejado, aquele mesmo cheio de vadias. Acreditava, enfim, um pouquinho mais na humanidade. E quer compartilhar essa crença aqui.

 

[Texto escrito após algumas semanas de vida em Manchester, na Inglaterra, onde aparentemente ninguém está nem aí se eu vou de pijamas ao supermercado. A(s) Marcha(s) das Vadias 2013 vem aí, prepare-se!]