Vagões exclusivos para mulheres e a iminência da exclusão de pessoas trans*

Texto de Hailey Kaas.

Quando eu soube da possibilidade de implantação dos tais vagões exclusivos (vagões “femininos”) aqui em São Paulo, tal qual existe no Rio de Janeiro, estremeci. Há algumas semanas, rola a notícia de que a Comissão de Transportes aprovou um PL que obriga as empresas de transporte a criar um vagão exclusivo. Segundo a notícia:

O PL 341/2005, de autoria do então deputado Geraldo Vinholi (PSDB), determina que as empresas de transporte público sobre trilhos destinarão, nos horários de pico, vagões exclusivos para o transporte de passageiros do sexo feminino.

Desde então, li algumas críticas de colegas feministas, espalhadas pelo Facebook e Twitter, assim como esse texto de Cely Couto: ‘Vagões para mulheres, sociedade para homens‘. A maioria das críticas foca na ideia perversa da segregação de mulheres em prol de um paliativo benéfico que na realidade somente tapa o sol com a peneira.

Cely Couto comenta como a medida é na realidade machista, que coloca mulheres como indefesas e como perpetua aquela velha ideia de ensinar as mulheres a não serem estupradas em detrimento de eliminar o problema pela raiz: ensinar os homens a não estuprar (e, nesse caso, a não assediarem).

Até mesmo no Japão, onde os índices de assédio no metrô são altíssimos e existe vagão exclusivo, existem campanhas anti-assédio espalhadas pelos vagões (talvez justamente por isso). As campanhas lançadas pelo governo do Equador (Reacciona Ecuador), também demonstram uma boa vontade de atingir o problema na raiz, sem lançar mão de medidas paliativas.

Além disso, há notícias e relatos de que no metrô do Rio de Janeiro os homens não respeitam os vagões exclusivos e entram quando querem, e quando mulheres tentam impedir mesmo assim insistem. Parece que não há uma fiscalização rigorosa em relação aos tais vagões, exceto com mulheres trans* como veremos…

Mas não estou aqui para falar do machismo da medida. Isso já foi amplamente discutido. Tenho certeza que novos textos feministas surgirão comentando sobre a inutilidade e sobre os reveses da medida. Estou aqui para falar sobre como as pessoas trans* — em especial as mulheres trans* — serão quase ou totalmente excluídas, física e simbolicamente dos vagões femininos.

No metrô. Foto de Antonin Rémond no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
No metrô. Foto de Antonin Rémond no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

Já aconteceu no Rio de Janeiro. Sabemos que socialmente mulheres trans* são vistas como homens. Nada mais “natural”, então, do que serem impedidas de acessarem os espaços considerados exclusivos de mulheres cis. O que não deixa de me surpreender, porém, é como a fiscalização foi/é falha em barrar homens cis de utilizarem o vagão, mas foi rápida em remover mulheres trans* dos mesmos. Contudo, se formos analisar, a transfobia é uma ferramenta do patriarcado e por isso nada mais natural do que haver um duplo-padrão de ação nesse caso.

Convido as pessoas leitoras a me dizerem quantas pessoas trans* vocês conhecem, e quantas que não conhecem mas já viram por aí, nos espaços públicos: nos bancos; nos parques; nos shoppings; nos restaurantes; nas universidades; nos seus coletivos feministas; até nas ruas. Onde estão essas pessoas? Só poderiam ser perceptíveis, as pessoas que não “passam”, pois as que “passam” ganham um temporário privilégio social (a de se “parecer” com uma pessoa cis e logo “passar despercebidx”). São essas pessoas as que vão sofrer com a medida do vagão. E só uma dica: elas são a maioria das pessoas trans*. Além disso, “passar como cis” não deveria ser pré-requisito para adquirir respeito, não deveria ser premissa para humanidade.

A questão resume-se no mesmo problema do banheiro.

Eu disse que a maioria das pessoas afetadas seriam as mulheres trans*. No entanto, prevejo homens trans*, como mencionei, no dilema dos banheiros: num você corre o risco de violência física-sexual-verbal; noutro você também corre os mesmos riscos, embora a meu ver minimizados pela percepção cissexista das mulheres cis de que homens trans* são “lésbicas masculinas” — e justamente por isso, fonte de disforia para esses mesmos homens. Em última instância, seria um absurdo abrir mão de sua identificação para obter uma suposta segurança (física-sexual).

Por fim, temos que perceber o que está em jogo quando se fala em vagões exclusivos para “um sexo”. Significa enrijecer o binário que orienta os sexos. Em nossa sociedade: homem = pênis e mulher = vagina. Não requer nenhuma elaboração teórica para imaginar que qualquer medida de segregação sexual dentro desse pensamento deixa de fora pessoas trans*. Já não acessamos espaços básicos de convivência social — ora por exclusão simbólica (por medo, por falta de dinheiro ou educação formal, etc.), ora por exclusão física (por literalmente sermos expulsas).

O Transporte é um direito básico — é o direito de ir e vir — e retirar ainda mais esse espaço de nós é contribuir para nossa total assepsia. É trabalhar a favor da transfobia e de nossa morte direta e/ou indireta. Nós, como feministas, temos que lançar mão de autocrítica e verificarmos se ainda estamos dispostas a rifar os direitos de pessoas trans* em prol de uma medida paliativa que, como vemos, nem muito positiva é até mesmo para mulheres cis.