Dentro do espelho

Texto de Denise Oliveira.

Era uma manhã, como qualquer outra. Nada parecia tirar o tédio daquela segunda-feira. Regina já havia preparado tudo na noite anterior. As roupas que escolheu para trabalhar no dia seguinte, os livros da pós-graduação, a marmita do trabalho, a lancheira do Pedrinho, os materiais escolares da Júlia, já havia separado as meias sujas do marido, a mensalidade da escola das crianças, as contas para pagar. As unhas já estavam feitas, o cabelo sempre impecável, a sibutramina para tomar. Mas estava amarga, como todos os dias. Não sabia exatamente o motivo. Os olhos estavam inchados, talvez por causa do choro calado que durara a madrugada inteira.

Regina não sabia explicar o que a fazia se sentir uma megera. Teve a sensação de que perdera há muito tempo o entusiasmo. Que não estava mais dentro do “sopro divino”, mesmo que tenha pedido a vida inteira a deus uma carreira promissora, uma bela cria e um companheiro ideal. A tríade acima era a promessa de felicidade plena na vida de uma mulher. Afinal uma mulher viver sozinha, para aquela sociedade, ainda era sinal de insensatez, infelicidade. Ser solteirona não era visto como imoral como em outros tempos, mas implicava compaixão por parte de outras. A própria Regina sentiu dó ao ver uma mulher tomando um drink desacompanhada em um barzinho. “Coitada da mal amada”, considerou.

Regina era uma mulher da contemporaneidade. Levava com afinco o mundo nas costas. -Uma conquista, repetia sempre. Estudos, casamento, família, vida profissional. Desde pequena se preocupou em perseguir objetivos, alcanças metas… Meta era a palavra do novo milênio. Pregava com sua formação em marketing. Foi uma excelente aluna na graduação, mas demorou cursar por causa do nascimento da Julinha, seguido pelo do Pedrinho. Agora orgulhava-se com os passos largos na especialização. Deixava claro para a Julinha, todos os dias, em quem a garotinha deverá se espelhar quando crescer.

O desejo dela era que as outras mulheres pudessem ter o privilégio de ser tão livre e independente quanto ela. Mas Regina reprimiu a Júlia quando ela quis brincar com o carrinho do irmão, jogar bola, subir na árvore. Queria a filha bem comportada, mocinha, uma boa menina. Com Pedro era diferente. Indagava a mãe, brigava com os colegas, corria, pulava cerca, beijava as meninas escondido, e às vezes implicava com a irmã falando que ele era melhor que ela porque podia fazer xixi em qualquer lugar se tivesse apertado, era mais fácil. Pedrinho era bicho solto. O que sempre igualou os dois irmãos foi a esperteza em matemática.

O dia em que Julinha, dois anos mais velha que o irmão, chegou em casa perguntando se podia ter um namorado, seu pai quase teve um ‘troço’. Cedo demais, desnecessário, impensável. Diferente de Pedrinho, que já tinha várias namoradinhas desde a pré-escola. Regina sorria da astúcia do bastardo quando chegava com essas estórias.

Foto de Cesar Aponte no Flickr em CC, alguns direitos reservados.
Mulher em frente o espelho. Foto de Cesar Aponte no Flickr em CC, alguns direitos reservados.

A jovem mulher sabia do peso que carregava. A criação dos filhos tomava-lhe tempo. Além disso, as panelas deveriam estar sempre limpas, a casa impecável, a despensa farta, o corpo esbelto, as unhas esmaltadas, os cabelos tingidos da forma com que jamais deixasse aparecer os primeiros fios brancos de uma trintona, as contas em dia. Era necessário ainda receber os elogios do chefe. E na cama, precisava ser uma quente dama. Se fazer presente pra não ser traída de novo. Da última vez sentiu-se culpada por ter perdido a libido.

Em casa, uma super mulher se olhava no espelho. A exaustão tomava-lhe a face sem medidas. A dor de não saber o porquê do amargo e da insatisfação. Aos quinze, foi a debutante mais linda de todo o salão. Aos vinte e três, subiu ao altar como sempre sonhou… com o vestido branco rendado com pedrarias. Foi mãe e amou na vida. Nada a poderia fazer tão feliz. No entanto, todos os dias era esse vazio sem explicação que alimentava a rotina de matrona.

Regina se viu dentro do espelho de novo. Os ponteiros do relógio pulsavam depressa. A sua imagem refletida transfigurava-se na imagem de uma Julinha adulta. A via sofrendo dos mesmos complexos. Lembrou do aniversário com tema de princesas que fez para a filha, dos contos de fadas que contou. Dos olhos da menina brilhando ao lhe dizer que na vida se espera um príncipe encantado. Que cada panela tem sua tampa. Da coleção de barbies no quarto rosa, comprada com muito suor. Tarde demais para consertar tantos detalhes.

Tentou pensar em outras coisas que torturassem menos. Fez os olhos procurarem outras cenas no quarto. Observou o marido, que dormia um sono pesado, roncava tranquilamente, depois de ter se queixado do cansaço de um dia inteiro de trabalho. Não era um marido ruim, só parecia incapaz de compreendê-la de vez em quando. Saiu do quarto. Passou pelo corredor escuro do apartamento. Abriu a porta azul do quarto de Pedro. O menino repousava cercado por seu conjunto de carros em miniatura.

Depois se dirigiu ao quarto da filha mais velha. Notou-a profundamente. Sua respiração calma. Os cabelos presos com uma trança. Já estava uma moça. Moça demais para usar tranças daquele jeito, pensou. Já fazia doze anos que foi surpreendida pela primeira gestação. Os seios de Júlia já aparentes. Os olhos fechados sem imaginar o futuro que a aguarda na vida. Sentiu pena da ingenuidade da filha. Desatou a chorar. Recuou fechando a porta devagar, depois que o pranto cessou. Foi até a cozinha tomar sua dose diária de antidepressivos. Era o ritual para mais uma tripla jornada de trabalho. Regina só queria ser feliz. Só queria ser livre. Sonho que ainda parecia tão distante no início da segunda década do novo milênio.

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Denise Oliveira é jovem, negra, blogueira, estudante de comunicação organizacional na Universidade de Brasília, faz pesquisas sobre formação da identidade cultural brasiliense, feminista, escreve poesia desde os 13, pinta quadros quando surta em um mar de sentimentos, adepta ao octolactovegetarianismo, simpatizante dos movimentos sociais, culturais, LGBTT, movimento negro, indígena e de outras minorias, defensora da democratização do acesso a comunicação. Anseia por libertação de todas as amarras da sociedade. Escreve no blog Poética Desinibida. Facebook.