O que os inúmeros tons de diversas cores querem dizer sobre a mulher de hoje?

Texto de Heloise Merolli.

Ano passado, em meu aniversário de 43 anos, sabe o que me surpreendeu? De um grupo de 10 amigas ganhei dois exemplares do livro “Cinquenta tons de cinza”.

O primeiro pensamento que me veio à mente foi: Será que elas acham que a minha vida sexual é tão chata?  Depois: Elas são minhas amigas, deveriam me conhecer melhor. Mas se elas leram e gostaram, acharam que eu também iria gostar.

Cerca de dois meses depois, em outra roda de amigas na praia, uma delas tira o número dois da série da bolsa. Não me aguentei e perguntei: Como é que você aguenta ler isso?  (eu não tinha gostado). A resposta: Mas por quê? É tão legal! Pode não ser literatura, mas para ler na praia… Outra já emendou: Você não gostou?  Aí, claro, já estava arrependida de ter falado qualquer coisa, mas não consegui me segurar e abri minha grande boca de novo: Olha, fiz um esforço para ler até a página 120 e, sinceramente, achei louco de chato e muito mal escrito.

Claro que se seguiu uma daquelas discussões femininas de conversas cruzadas, ininteligível e da qual, obviamente, ninguém espera uma conclusão. Isto bem esclarecido, de que me lembro? De alguns comentários a respeito da autora, que deve ter feito uma boa pesquisa na internet, já que as descrições das cenas de sexo são técnicas e detalhadas. De que afinal, ela era uma dona de casa entediada, de que ninguém acreditava no argumento jovem e inocente de encontrar o amor em um homem lindo, milionário e traumatizado (o qual é salvo da perversão). Também lembro de terem falado que era um híbrido de Sabrina com a extinta revista Fórum de Ele & Ela. Faz sentido, a faixa etária dessa turma era do período pré-internet, adolescência dos anos 80. Ao menos a série teve o mérito de tirar a mera existência de fantasias sexuais femininas do fundo da gaveta e colocá-la nas rodas de conversa.

Livraria em Curitiba. Foto de Heloise Merolli.
Livraria em Curitiba. Foto de Heloise Merolli.

Não pensei no assunto, até hoje. Uma linda e rara tarde de sol e calor em Curitiba, tempo livre e, por que não ir dar uma caminhada pelo bairro? Quem sabe passar numa livraria? Sempre li muito, de Tolstói a Dan Brown, passando por ficção científica.

Entrei na livraria e fui para a seção de literatura estrangeira. Comecei a reparar que dentre os livros em destaque, três em cada quatro eram do segmento que podemos classificar como… Romance água com açúcar erótico? Não, não é exagero, até fotografei. Perguntei para o vendedor quem definia o que ficava em evidência no mostruário. Ele me disse que, de maneira geral, era o gerente e que procuravam fazer um mix do que mais vendia e das novidades. Pensei que talvez fosse uma particularidade daquela loja, fiquei com a pulga atrás da orelha. Afinal, se esses são os livros que estão sendo comprados por mulheres e vendem muito, o que isso diz a nosso respeito?

Antes de me aprofundar nessas questões, cheguei em casa e fiz uma busca na internet para ver os mais vendidos em diversas redes. Adivinhe? Tese confirmada, resta a pergunta: O que afinal, isso diz sobre nós, mulheres, nos dias de hoje?

Será que queremos apenas nos divertir e não refletir? Será que não temos outros grandes interesses? Será que somos todas frustradas sexualmente? Será que ainda procuramos o príncipe encantado, sendo que hoje em dia ele também tem que ter uma baita performance sexual? Será que são os homens que não estão percebendo que as mulheres tem fantasias e que as querem realizar?

Não concordo com o tema do príncipe encantado sexualmente perfeito. Sou do tipo de mulher que luta para ser dona do próprio nariz, me divido como tantas outras mulheres entre filhos, trabalho, marido, amigas, atividade física, salão de beleza, atividades domésticas e um tempinho para me atualizar nos temas de meu interesse. Ufa! Toda mulher sabe que não é fácil e que não há independência sem pagar as próprias contas. Acho que o machismo oprime tanto homens quanto mulheres, que a felicidade é construída por cada um. E também que colocar suas expectativas no outro/a é receita certa para infelicidade.

Mas, veja bem, são livros escritos POR mulheres. E lidos POR mulheres. Mesmo que o conteúdo seja sexista e escapista, esses livros provavelmente significam que boa parte delas sonha com outros horizontes de realização sexual, mesmo que não sejam exatamente os que estão nos livros. Só isso já dá uma dica de que a liberação feminina ainda não chegou onde as mulheres queriam. Não basta poder transar com quem bem se entende, talvez a mulher queira que os seus desejos sejam levados em conta. Que as fantasias não sejam só as masculinas, que a pornografia não seja só masculina, que o olhar sobre o desejo e o sexo não seja só masculino.

E, se for isso, talvez, apenas talvez, ao invés de prestar um desserviço às mulheres, caricaturizando-as como as Anastasias que ainda procuram o príncipe encantado e acreditam que o amor redime tudo, talvez subverta um pouquinho essa lógica de mercado masculina que tudo define e haja uma chance dos desejos femininos fazerem parte das relações. Talvez, então, se abra espaço para perguntar também o que mais as mulheres querem, além de sexo como elas esperam. E, quem sabe, os homens também encontrem no meio do caminho uma maneira de se libertar do estigma de príncipe encantado perfeito e possam se mostrar também como seres um pouco mais complexos e menos estereotipados.

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Heloise Merolli, nascida para ser dondoca, saiu do avesso. Desde cedo contestadora, questionadora e independente. Comunicadora e designer por formação apaixonou-se pela terra e se dedica à agricultura e produção de vinhos. Casada e mãe de dois pré-adolescentes e luta diariamente, com palavras e exemplos, para que a/o filha/o vivam em um mundo mais igualitário.