Sobre Feminismo e a exposição de pessoas nas redes sociais

Texto de Camilla de Magalhães Gomes.

Mais um dia de treta na internet e, infelizmente, mais um dia de treta na internet entre feministas.

Semana passada, uma denuncia de agressão machista foi repercutida em diversos blogs e páginas feministas. A nota foi deletada posteriormente devido às críticas, mas ainda pode ser lida no cache do google. Seu conteúdo começa com estatísticas da violência contra as mulheres com as quais lidamos diariamente, também ressalta que a violência doméstica é muito comum, mesmo entre pessoas militantes da esquerda. Porém, a nota traz a foto do homem acusado de ser o agressor, com uma tarja vermelha sobre seu rosto, seu nome completo, faculdade em que estuda e não apresenta provas das acusações. Promove um linchamento público de alguém que tem direito a presunção de inocência, como qualquer outra pessoa.

Foto: Jakub Krechowicz/SXC.
Foto: Jakub Krechowicz/SXC.

E a minha tristeza, é claro, vem quase sempre do mesmo fato: por se tratar de outro caso de uso violento e punitivista do movimento. Expor uma pessoa acusada de um ato — e digo ato porque pouco sei da história do menino cuja foto foi postada — não é, nem de longe, um comportamento que se espera de um movimento social com um histórico tão significativo no Feminismo.

Não se discute que, sim, a violência de gênero é tema sério, que precisa receber melhor tratamento dos atores do direito — que atores deveriam ser, mas que, por gosto, por costume ou por péssima tradição, são mesmo muitas vezes só operadores. Também é válida a lembrança de que o sistema penal não tem dado respostas satisfatórias ao fenômeno. Também é verdadeiro que a luta do movimento feminista e sua procura por dar visibilidade a esta espécie de violência tem sido das mais importantes ferramentas. Mas, a dita “impunidade” não justifica um linchamento público.

Vale ressaltar que não se trata de duvidar da acusação da vítima, mas que todos sejam responsáveis por seus atos. E, acusar publicamente alguém de “agressões físicas e psicológicas com sua ex-namorada: desde chantagens emocionais, crises repentinas de ciúme, até agressão sexual para realização de seus fetiches” é grave.

Parece-me inadmissível que um movimento que tenha por base a defesa dos direitos humanos inverta o quadro e passe a ser o violador desses direitos humanos. Presunção de inocência não é conversa de advogado e não é meramente assunto de “tribunal”. Direitos fundamentais não funcionam apenas como proteção do indivíduo contra o Estado, mas também, na mais elementar das noções conhecidas sobre estes, funcionam também nas relações entre os cidadãos.

Nessas horas, grita lá no fundo para mim, sempre, a mesma expressão: “esquerda punitiva”. A ideia devia ser uma preocupação constante dos movimentos sociais, que, construídos pelo oprimido, conhecem a força do uso do sistema punitivo e das violações de direitos humanos. Infelizmente, a realidade tem sido que a ideia, de um guia, passou a ser essa armadilha constante em que caem os movimentos.

Claro, o ato não define “O Feminismo”. E nem digo isso pelo fato de não há “O Feminismo” mas “os Feminismos”. Este não é o tema. Quero apenas dizer que, mesmo que esses comportamentos sejam observados com uma frequência maior do que eu gostaria de ver, não dá pra dizer que seja “culpa do Feminismo”, como se fosse uma entidade única e personificada.

O escracho é uma forma válida de denúncia? Talvez sim. Mas é preciso responsabilidade para fazê-lo, tato para saber como e até onde ir e, especialmente, em se realizando um escracho através das redes sociais, ter o conhecimento do poder e do efeito de uma comunicação destas por estes meios. A potência destruidora de uma informação nas redes sociais não está nas mãos de quem escreve, não é controlável e, quase sempre, gera consequências bem distantes do que se pensou ao escrever em primeiro lugar. E, mais ainda, quando vem de um movimento social com grande representatividade como é a Marcha Mundial das Mulheres (MMM).*

Parece que esquecemos sempre — e falo aqui em primeira pessoa mesmo, porque esse risco é de todas — que o uso de uma estratégia punitivista — ainda que se trate de uma estratégia fora do sistema penal — sempre sai do controle.

Dar voz às mulheres — vítimas ou não de violência — é um dos mais importantes papéis do Feminismo como ator político. E mesmo isso deve ser feito com responsabilidade, com a noção de que injustiças e erros podem ser cometidos e que, até aqui, em termos de condenação por crimes, apenas o processo penal pode dar resposta. Infelizmente ou não, para citar um professor, “só o que temos é essa merda”.

 

* Comentaristas chamaram minha atenção e, assim, faço uma nota aqui corrigindo. A nota não é assinada apenas pela MMM. Foi publicada no site da MMM, mas assinaram também:

Marcha Mundial das Mulheres

Coletivo Feminista Marias Baderna – Letras/USP

Frente Feminista – USP

JSOL – Juventude Socialismo e Liberdade

Consulta Popular

Levante Popular da Juventude

CAPPF – Centro Acadêmico Professor Paulo Feire (Faculdade de Educação da USP)

Coletivo de mulheres da FEUSP

Coletivo Marias

Coletivo Canto Geral (Faculdade de Direito da USP)

Página O machismo nosso de cada dia

Movimento Primavera Feminista

Coletivo Feminista Lélia Gonzalez

Coletivo Feminista Juntas