Texto de Ingrid Cyfer.
Recentemente, as Blogueiras Feministas publicaram um interessante artigo de Lisa Wade sobre a polêmica gerada pela carta aberta de Sinead O’Connor a Miley Cyrus: Meus dois centavos sobre o feminismo e Miley Cyrus.
Em sua carta, O’Connor responde à declaração de Cyrus, de que seu último clipe “Wrecking Ball” teria sido inspirado em “Nothing Compares to You”. O’Connor sentiu-se incomodada por ter sido citada como inspiradora de uma performance sensual que, para ela, corrobora e exprime a exploração do corpo da mulher pela indústria fonográfica. Amanda Palmer, por sua vez, entrou na briga e respondeu a O’Connor dizendo que restringir a liberdade individual de cada mulher expor seu corpo como quiser é anti-feminista.
Em sua análise, Wade procura despolarizar a discussão, com toda razão. Ressalta que ambas estão corretas, mas incompletas. Nenhuma delas conseguiria ver o quadro total, porque uma foca na dimensão individual da liberdade das mulheres e a outra, na limitação estrutural dessa liberdade que subordina a artista à exploração capitalista e sexista da indústria fonográfica.
O quadro mais geral, argumenta Wade, seria uma combinação desses dois níveis de análise, que articula a dimensão individual e a estrutural. Nessa articulação, a performance sexy de Cyrus para vender mais discos não a tornaria uma marionete do sistema capitalista patriarcal. No entanto, a escolha de Cyrus tampouco seria a de um sujeito livre de condicionantes sexistas. Ao contrário, ela seria estimulada por um sistema de recompensas materiais e simbólicas que premia estereótipos de gênero. Em suma, roupas e performances sensuais irão torná-la mais rentável, mas nem por isso Cyrus seria um mero produto, uma vez que ela teria feito uma escolha estratégica de usar valores patriarcais em seu próprio benefício.
No entanto, diz Wade, sua escolha não é boa para as mulheres na medida em que ela reforça padrões de gênero opressores. Nesse sentido, a utilização estratégica da própria sensualidade seria conservadora. Wade admite, porém, que nenhuma de nós pode dispensar estratégias desse tipo, uma vez que numa estrutura patriarcal precisamos negociar com esse sistema para sermos felizes ou, poderíamos dizer, para obtermos reconhecimento social. Quem poderia nos condenar por isso?
No entanto, ao mesmo tempo em que suaviza a crítica de O’Connor a Cyrus, Wade conclui que “(…) uma coisa é certa: será necessário um sacrifício coletivo para construir um mundo onde a humanidade das mulheres esteja tão estabelecida que as escolhas individuais de cada mulher não prejudiquem as outras” (grifo meu).
Ao relacionar a luta feminista a um “sacrifício coletivo”, Wade entra, a meu ver, num terreno traiçoeiro, que pode induzi-la a reproduzir a polarização sexista entre a santa e vadia, renomeando seus pólos de feminista (a “santa” que se sacrifica pela causa) e a antifeminista (a “vadia”que se vende ao sistema capitalista de exploração do corpo feminino).
É verdade que em nenhum momento Wade faz uma condenação moral da performance “anti-feminista” de Cyrus. Ao contrário, ela nos convida a adotar um postura empática e solidária em relação a todas as “barganhas patriarcais” que as mulheres tem de fazer para “navegar nesse mundo injusto”. No entanto, ao estabelecer uma conexão necessária entre a performance sensual e a exploração sexista, sua análise, até então bastante ponderada, desliza para um discurso feminista que representa outra instância de produção de regras, classificações e rótulos sobre o comportamento da mulher. Desse modo, a dicotomia permanece de pé. Mas será que o feminismo precisa mesmo dela?
A Marcha das Vadias talvez seja um dos melhores exemplos de como escapar dessa armadilha. Reúne na rua, lado a lado, mulheres de topless, de minisaia, de cintaliga e espartilho, gordas e magras, de todas as raças, vestidas de burca e de calça jeans e camiseta; todas reivindicando politicamente a apropriação de seu corpo. Não há regras para distinguir o visual ou a performance feminista da conservadora. O foco do discurso é reivindicar a liberdade de a mulher se vestir como quiser, sem se expor a violências físicas ou simbólicas.

Um dos pontos mais interessantes desse tipo de manifestação é sinalizar que o sexismo pode se expressar de diversas formas. Ora como cobrança de exposição do corpo (desde que perfeito), ora como imposição da discrição e do recato. Apesar de serem exigências opostas, ambas são igualmente opressoras justamente porque o que oprime não é o conteúdo da cobrança, é a cobrança em si mesma. Daí o topless na marcha das vadias ser tão subversivo quanto a burca.
Essa é uma possibilidade de apropriação feminista da sensualidade (ou do recato) que não parece estar contemplada no argumento de Wade. A vinculação necessária entre a sensualidade de Cyrus ou de Lady Gaga (que Wade também menciona no artigo) e a reificação dessas mulheres parece sugerir uma concepção de opressão feminina identificada com um conteúdo específico (a exploração da sensualidade) e que, por isso, gera novas cobranças em relação ao comportamento e às escolhas das mulheres.
Wade parece reconhecer isso quando diz que será preciso um “sacrifício coletivo”. Sacrifício porque teremos de abrir mão de estratégias como a de Cyrus e recusar recompensas de um sistema que premia nossa subordinação. Alertar para essa ambivalência na luta feminista, uma questão brilhantemente tematizada por Beauvoir e tantas outras teóricas contemporâneas, tem o mérito de colocar luz não apenas nos ganhos, mas também nos custos que essa luta acarreta. No entanto, esses custos serão um tanto mais altos se o lócus privilegiado do combate ao sexismo for a regulação do corpo e da sexualidade da mulher pelo próprio feminismo.
Ao invés de construir códigos de conduta sobre o modo de exposição do corpo “verdadeiramente feminista”, melhor seria dirigir a reflexão e a discussão normativas aos princípios e regras que condicionam o debate democrático e as políticas públicas voltadas às questões de gênero, consideradas em toda a sua interseccionalidade. Isso, é claro, supõe uma participação ativa das feministas no debate público, no sistema político, e sua atuação nos movimentos sociais no sentido de tornálos capazes de lidar democraticamente com a pluralidade e conflitos de interesse em seu próprio interior. Mas isso nada tem a ver com sacrifício coletivo. O nome disso é ação coletiva. E para isso não é preciso regular o tamanho da saia de ninguém.

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Ingrid Cyfer é professora de Ciência Política da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora na área de Teoria Política Feminista.