Texto de Brynn Tannehill. Tradução de Roberto Maxwell.
Publicado originalmente com o título: ‘The Fatal Transgender Double Standard’ no site Huffington Post em 10/01/2014. A tradução foi publicada em 12/01/2014 no perfil do Facebook de Roberto Maxwell.
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Recentemente, a jornalista norte-americana Katie Couric entrevistou a modelo transgênero Carmen Carrera e a estrela do seriado ‘Orange is the New Black’, Laverne Cox. Por alguma razão, Couric decidiu, de repente, questionar Carrera sobre suas “partes íntimas” serem “diferentes agora” e se ela já tinha feito a cirurgia. Carmen silenciou Couric imediatamente e a lembrou que essa é uma questão privada e muito pessoal. No bloco seguinte, com Laverne, Couric foi direta e perguntou a ela sobre a questão da genitália.
A resposta de Laverne foi impecável.
“A preocupação com a transição, com a cirurgia objetifica as pessoas trans e, assim, nós não chegamos a lidar de verdade com as experiências de vida reais. A realidade das vidas das pessoas trans é que nós somos, com frequência, alvos de violência. Nós sentimos a discriminação de forma desproporcional em comparação ao restante da comunidade [LGBT]… Dando destaque aos nossos corpos, nós não nos concentramos na realidade vivida dessa opressão e dessa discriminação.”

Outros comentaristas ressaltaram que os corpos das pessoas transgênero são, de algum modo, domínio público. Embora Laverne tenha feito alusão a isso, acredita-se que não somente nossos corpos são de domínio público como o são, também, as nossas histórias. Os resultados deste pensamento irreal são terríveis.
Na Austrália, a polícia prendeu um homem. Durante o tempo de prisão, um policial informou a ele (ilegalmente) que sua namorada era uma transexual operada. Depois de solto, o homem voltou para casa e encontrou a namorada dormindo. Ele a acordou com golpes violentos usando um cinzeiro de vidro, até que este arrancou os lábios dela. Depois que ela perdeu a consciência, ele a jogou varanda abaixo, de uma altura de dois andares.
O policial que vazou a informação foi punido com serviços comunitários.
Na Escócia, um homem transgênero foi acusado de estupro e colocado na lista de criminosos sexuais por não revelar sua condição à namorada antes de uma relação sexual consensual.
Fica entendido que qualquer pessoa transgênero que não disser a seu parceiro que fez a transição é culpada por estupro e que a violência contra essa pessoa é apenas um justificável ato de legítima defesa. Do mesmo modo, um homem enfiou as mãos nas calças de uma mulher transgênero, sem seu consentimento, e a golpeou quando descobriu seu gênero de nascença. Ao comentar sobre o ataque, alguém definiu o modo como as pessoas transgênero são obrigadas a saber o seu lugar:
“Como homens heterossexuais não estão procurando por pessoas do mesmo sexo biológico que eles, esta pessoa transgênero não deveria ter informado que ela é, na verdade, um homem? ‘Anita’ Green é que é o problema aqui, não o coitado do cara que foi enganado.”
Quando o namorado de Angie Zapata, 18 anos, descobriu que ela era transgênero, depois de tocá-la à força, ele a golpeou com um extintor de incêndio até a morte. Alguém resumiu os sentimentos da sociedade em uma frase que apareceu como comentário no Denver Post: “Este transexual procurou por isso…”
Nossos corpos não são nossos, nem mesmo a história dos nossos genitais ou da nossa genética. Por alguma razão, isso parece se aplicar somente às pessoas transgênero.
É aceitável socialmente que alguém bata em uma mulher quando descobre que ela é, em parte, judia? Homens são obrigados a dizer que são circuncidados? Mulheres devem anunciar que usam piercing clitoriano? É legítima defesa se você mata seu namorado porque descobriu que ele, ao contrário de você, é um gay que teve experiências com o sexo oposto? O que você acha de jogar sua namorada da sacada depois de descobrir que ela, antes de se descobrir lésbica, se reconhecia como bissexual?
De Gwen Araujo a Brandon Teena passando por Angie Zapata e Cemia Dove, a falta de autonomia sobre nossos corpos tem significado sermos despidas e apalpadas à força, estupradas, estranguladas, esfaqueadas, queimadas e golpeadas. Isso quer dizer que a transfobia está presente nas cortes e, em alguns casos, ela vence. Depois que Brandon McInerney atirou duas vezes na parte de trás da cabeça de Larry King no meio de uma sala de aula cheia, o juri criou um impasse no caso. Alguns até se solidarizaram com o assassino. “[Brandon] estava apenas resolvendo o problema”, disse um jurado.
Desde a entrevista de Couric, muito tem se escrito sobre o fato de pessoas transgênero não terem nenhuma possibilidade de privacidade. Laverne citou a violência que a comunidade trasngênero enfrenta. O pensamento de Couric de que as pessoas transgênero têm poucos direitos à privacidade física é uma expressão desta situação.
Autora
Brynn Tannehill é mãe, escritora, cientista e advoga pela inclusão de pessoas trans no serviço militar. No twitter: @BrynnTannehill.