Tradução do texto “A Message to Girls About Religious Men Who Fear You” de Soraya Chemaly. Publicado no site Huffington Post em 21 de maio de 2012.

Queridas meninas,
Vocês são poderosas além das palavras, porque vocês ameaçam revelar o controle de homens corruptos que fazem abuso da autoridade.
Nos Estados Unidos, na semana passada, algumas pessoas não deixaram os meninos jogarem a final do campeonato de baseball, porque uma menina estava na equipe adversária. Ela já havia ficado de fora de dois jogos por causa das exigências dessas pessoas. Por quê? Será que ela, uma atleta de competição e um membro de sua equipe, escolheu isso? Ela estava sendo boa e respeitosa quando aceitou as exigências? Por que não pediram para essas pessoas abrirem mão de seus jogos? Quais mensagens foram enviadas para ela e para os/as colegas de equipe? Isso não é complicado. Isso enviou as mensagens erradas. Mensagens confusas. Mensagens incoerentes. Você precisa saber que ela deveria ter sido autorizada a jogar e não ter de ficar de fora de dois jogos. Essas pessoas, e outras como elas, em todo o mundo, lideradas exclusivamente por homens religiosos, têm medo de você e não vão deixar você em paz. Você as preocupa constantemente.
Se você não fosse poderosa, elas não levariam você tão a sério e elas levam você muito, muito a sério. Você deveria também. Você pode deixar o mundo em chamas.
Não parece ser assim, eu sei. Se isso fosse verdade, você pensa, eu não teria que ficar no banco nos jogos de beisebol em respeito a crenças religiosas que exigem a minha subserviência e a chamam de presente. Eu não seria dispensada de servir a Deus com meus irmãos. Eu não seria ensinada que eu sou uma mulher sedutora diabólica ou a guardiã da virtude dos meninos. Eu não teria a virgindade empunhada como uma arma contra mim e meu valor determinado por meu ventre. Eu não seria cuspida e chamada de prostituta por homens quando eu tenho oito anos porque meus braços não estavam cobertos. Eu não seria envenenada por ir à escola. Eu não seria forçada, com a idade de 9 anos, a carregar gêmeos frutos de tortura infantil. Eu não teria de me matar para evitar me casar com o meu estuprador. Se isso fosse verdade, essas pessoas iriam perseguir os meus estupradores em vez de apedrejar-me por seus crimes. Eu, e outras milhares, não seríamos mortas pela “honra”.
Meninas, essas coisas acontecem porque há homens com poder que temem você e querem controlá-las. Eu sei que equiparei jogos de beisebol relativamente inofensivos com crimes de honra mortais, mas, enquanto um é um tipo de micro-agressão diária, aparentemente inofensiva e a outra é uma macro-agressão letal, elas compartilham as mesmas raízes. A base de ambas, e das ações crescentes no meio, é a mesma: ensinar a você, e a todas as meninas sujeitas a esses homens e à sua autoridade, uma lição: “Conheça o seu lugar.” Eu também sei que há lugares onde as meninas são marginalizadas e agredidas que não são religiosos. Mas por todo o mundo esses hipócritas, homens piedosos, em sua injustiça vergonhosamente óbvia, representam a ponta afiada de um iceberg, a superfície visível de um mal profundo e vasto. Eles empregam uma gama completa de sua influência terrena e divina para ter certeza, o mais cedo possível, que você e os meninos em torno de você entendem o que eles querem que seus relativos papéis sejam. Onde há religiões patriarcais, as meninas, em graus dramaticamente variados e extremos, sofrem de forma desproporcional. Compreenda esses homens por aquilo que são: intimidadores. Não internalize o que eles querem fazer você acreditar.
Sua existência os deixa ansiosos. E a ansiedade deles é particularmente alta, porque você tem algo que nenhuma geração de meninas teve antes – comunidades globalmente conectadas de homens e mulheres que apoiam a sua igualdade e liberdade. Como em Armas, Germes e Aço (tradução para o português) essa tecnologia transformadora, que me permite escrever para você aqui, altera a geografia, muda a sociedades e desmantela os sistemas de controle — faz do mundo um lugar menor e cria, mesmo que lentamente em alguns lugares, mudanças positivas para meninas como você. Veja, até agora, esses homens poderiam contar, na verdade eles poderiam assegurar, que você e as mulheres ao seu redor estavam presas a casa e isoladas. Muitas de vocês ainda estão. Mas agora há milhões e milhões e milhões de pessoas que estão pensando em você e desafiando esses homens a cada dia. Você tem a velocidade da luz ao seu lado e, a menos que alguém apague as luzes permanentemente, esses dias acabaram. Então, embora você possa sentir que está sozinha, você não está.

Como você os ameaça? Uma menina sozinha? Sendo capaz, forte, confiante e, sim, sem vergonha. Você não pode “naturalmente” estar interessada em domesticidade, piedade, pureza e submissão, e eles confiam no seu compromisso com essas coisas para organizar o mundo deles. As ações deles, de um extremo do espectro ao outro, são projetadas para encher você de dúvidas sobre si mesma e, em última análise, de medo — seja físico ou espiritual — porque senão você, e os meninos ao seu redor, serão plenamente conscientes de sua força e potencial.
Por causa disso, eles focam a atenção única e exclusivamente em você, seu corpo, suas roupas, seu cabelo, suas habilidades, sua liberdade física. Quando os “modos” e a “moral” deles não são universalmente aplicáveis, mas diferentes para meninos e meninas, você pode ter certeza que é por isso. Eles procuram ensinar a você, sutilmente, através de pequenos deslizes e expectativas generificadas, que você é “diferente”, fraca, indigna, incapaz. O triste é que, na percepção deles, se você é nenhuma dessas coisas, então eles não são fortes, dignos e capazes. Isso não é uma desculpa, mas uma explicação. É por isso que eles encontram infinitas e “benevolentes” maneiras de prejudicar e depreciar você, tudo em nome da “palavra de Deus”. Quando isso falha, eles recorrem à violência. Em todo o mundo, a ansiedade se manifesta em um espectro de ações que vão desde o paternalismo leve, respeitosas dos “limites adequados”, a mortais aplicações de suas regras.
Medo é o motivo pelo qual esses homens investigam “oficialmente” escoteiras enquanto escondem estupradores de crianças. É por isso que eles são obcecados com a sua “pureza”. É por isso que eles te segregam em espaços públicos e privados. É o motivo para que eles ensinem a meninas e meninos que o corpo das meninas é sujo e vergonhoso ou sagrado e pertencente aos homens. O medo os motiva a ensinar que você contamina os outros pela sua própria natureza. Isso os faz querer assegurar que você ficará em casa e não se relacionará com o mundo. Isso os leva a aceitar casamentos de meninas de 8 anos de idade com homens velhos. Isso os convence de que estupro e suas consequências são um “presente de Deus”. É por isso que eles incentivam pessoas a te apedrejarem até a morte e te desfigurarem com ácido.
Mesmo “extirpar o gay” das crianças, especialmente meninos que são “mais parecidos” com você, acontece pelo mesmo motivo. Porque se meninos são “mais parecidos com meninas”, o que esses homens consideram inferior, então você pode ser “mais parecida com meninos”. Isso causa ambiguidade e destroi a hierarquia que eles definiram cuidadosamente, e isso para eles é intolerável.
Medo é o motivo pelo qual eles insistem que há algo fundamentalmente errado com você. Não acredite neles. Medo é o motivo pelo qual querem que você cubra seu corpo. Não há qualquer coisa errada com seu corpo, e ele não deve ser culpado. Mesmo se você escolher expor seu corpo ou cobri-lo considere como a escolha é definida pela sua desqualificação moral com o fim de tolher sua sexualidade por uma cultura que se recusa a responsabilizar homens por suas ações e exige, radicalmente, que você esteja disponível para o prazer dos homens ou se retire do mundo e se mantenha reclusa. De qualquer forma, questione quem define seu valor e com que critérios. Por causa do medo eles te dizem que você é tão diferente dos garotos. Você e os garotos que você conhece entendem que seus corpos são diferentes, mas você é mais parecida do que diferente. Ao contrário, os homens adultos te dizem que você está ameaçada, não está segura. Não desista. Mesmo que você esteja em silêncio. As diferenças que essas autoridades religiosas evidenciam com exagero são simplesmente pilares de opressão usados para ensinar garotos e garotas que a submissão feminina é “natural” e “divina”. Rejeite-os, assim como suas ideias.
Isso é difícil de fazer. Isso exige que você seja corajosa, forte, determinada, perseverante e confiante. Isso demanda que você exija que os adultos com quem convive prestem atenção e mudem seu comportamento. Isso é mais difícil ainda.
Primeiro, e talvez o mais difícil de compreender para uma garota, é que as mulheres que amam você e cuidam de você muitas vezes autorizam esses homens. É o que as pessoas dizem, “Não são SÓ os homens!”. Essas pessoas estão certas, mulheres os apoiam, individualmente ou dentro de grupos, e de maneiras que provocam consequências privadas, públicas, políticas e sociais. Mas, não se engane — apesar de mulheres reforçarem as regras, elas não têm qualquer autoridade real e sistêmica na hierarquia religiosa conservadora, e elas sabem disso. Sim, sem o apoio delas os homens não poderiam continuar, mas até que elas sejam realmente livres — física, econômica e politicamente — e sua salvação prática e espiritual não seja mais mediada por esses mesmos homens, elas vão continuar a apoiá-los. Reforçar as regras é uma escolha racional que permite que elas sobrevivam em contextos injustos. Você as assusta também, porque você questiona sua cumplicidade e causa conflitos.
Segundo, é confuso que esses homens digam que fazem isso para seu próprio bem. Eles falam sobre te respeitar e respeitar sua dignidade. Você quer acreditar neles; eles têm poder e autoridade sobre você, seus pais, sua comunidade e seu acesso a Deus. Eles são muitas vezes bondosos e benevolentes e te amam. Então devem estar certos. Mas não estão. Eles demonstram a própria hipocrisia várias e várias e várias vezes. Eles dizem que sabem o que é melhor. Eles não sabem. Você sabe. Não acredite neles quando querem te ensinar, de várias formas, com textos sagrados, palavras cuidadosas, tradições preciosas, ameaças veladas e exemplos assustadores, que você é naturalmente mais pecadora, inferior, mais corrupta, menos digna e necessita de orientação masculina constante. Rejeite tudo isso.
As pessoas adultas em volta de você podem não te apoiar quando você questiona sua humanidade com base em conclusões religiosas lógicas. Não deixe para lá. Não deixe que usem a “tradição” como desculpa ou digam que “isso não importa”. Não permita que eles te peçam para “ficar fora de jogos”, “ser uma boa menina”, “não fazer escândalo”, “se cobrir”. Essas são micro-agressões que resultam em macro-agressões. Adultos muitas vezes não pensam nisso. Às vezes é assustador para eles também.
Você pode dizer: “Não há nada de errado comigo. Há algo errado com você e com seu mundo”.
Senão, quando você crescer, esses mesmos homens, os mesmos que te temem e te odeiam, vão continuar a te enfraquecer. Vão tentar controlar seu corpo, te afastar da vida pública, te subjugar em nome de uma “família” estritamente definida, criarão impedimentos para sua igualdade, vão te constranger sempre que possível e vão justificar a opressão de formas que desafiam a razão e a moralidade. Eles vão te questionar por ser forte, vão te violar, te apedrejar até a morte, te acusar de bruxaria, punirão você de todas as formas concebíveis para que você sirva de exemplo para… suas crianças.
Saiba, então, que você é forte e poderosa. Use a razão, confie em seus instintos. Procure aqueles que te apoiarão e sim, saiba seu lugar: no campo, nas ruas, no ônibus (na frente!), na escola, no trabalho, nos escritórios.
Você não está só e você é mais brilhante que o Sol.
A tradução deste post contou com a ajuda providencial de Karla Avanço.