Texto de Marcos Oliveira.
Eu nunca fui vítima de violência física doméstica enquanto criança por ser diferente do que a sociedade esperava de mim enquanto garoto; fui vítima, sim, até os meus 22 anos, antes de me aceitar e de sair do armário, de violência psicológica familiar, ainda que não intencional.
Violência psicológica que, na maioria das vezes, foi construída com base em imposição de dogma religioso desde que eu era criança porque, para minha família, ainda é o correto e o ideal que os filhos, netos e sobrinhos desde cedo sejam orientados, quase forçados, a frequentarem as igrejas evangélicas, como um tradição repassada de geração em geração; hoje eu sou totalmente contra que se imponha e repasse dogmas religiosos para crianças pois defendo que devemos esperar a criança chegar a idade de ter discernimento para decidir por si se quer adotar uma crença e qual crença deseja adotar.
Aos que me leem, vou ser piegas e contar brevemente minha história de vida para que possam compreender melhor o que descreverei nas linhas abaixo: minha mãe era casada e já tinha meus dois irmãos quando se envolveu com meu pai e engravidou de mim; o marido da minha mãe a expulsou de casa por ela estar grávida de outro homem e minha mãe, sem condições de criar eu e meus dois irmãos sozinha, tentou me abortar. Nasci prematuro de seis meses e fiquei três meses internado; quando tive alta, meu pai meu trouxe para a casa dos meus avós paternos que me criaram e são os que eu chamo de pai e mãe, com quem eu vivo até hoje.

Voltando à minha infância, enquanto os garotos da minha rua tinham como brincadeira o futebol, soltar pipa, etc, minhas brincadeiras preferidas eram brincar de boneca, de casinha e ensaiar coreografias com as minhas primas; meus avós tiveram muito filhos e filhas e a divisão de tarefas doméstica sempre foi regra, quando adolescente, como de regra da casa, eu passei a fazer os afazeres domésticos da casa sem ser recriminado, muito pelo contrário.
Uma vez, pelo o que a memória me permite lembrar, eu fui derrubado da cadeira em sala de aula por um garoto, na 4ª série, na época sem nem entender o porquê, já que eu era introvertido, me concentrava ao máximo nos estudos e quando interagia com meus colegas, a interação era 90% mais com as meninas porque eu não me sentia pertencente ao grupo dos meninos, e suas brincadeiras e papos machistas e sem graça; eu sempre fui destaque nas salas da série onde estudei pelas notas altas que tirava; talvez focar nos estudos fosse uma maneira de esquecer e tentar ofuscar parte de mim que eu queria que não existisse, como se eu chamasse a atenção dos outros para meu destaque na escola para esconder deles uma intimidade que eu tentava esconder até de mim.
Criado sob dogmas evangélicos, meu medo não era de que o destino teria me reservado um caixão, mas o “inferno”. Na descoberta da minha sexualidade também descobri minha atração pelo mesmo sexo e isto me perturbava cotidianamente e a medida em que eu crescia a perturbação mais me incomodava porque me foi ensinado desde criança que “efeminados não vão para o céu”, de que “deus fez o homem para a mulher” e que “um homem que se deitar com outro homem morrerá”.
Eu vivi sob este medo até os 22 anos, quando ouvi escondido meu pai e meu avô conversarem sobre eu estar possuído por demônios porque meu pai ouviu, no dia anterior, sem eu notar, uma conversa minha ao telefone com um amigo sobre o meu medo de ser rejeitado por minha família por ser gay. Após passar a noite inteira chorando no meu quarto, eu sabia que no outro dia eu seria questionado e caberia a mim tomar a decisão de continuar vivendo uma mentira ou me libertar.
A primeira pessoa para quem eu contei que eu sou gay foi para o meu avô – meu maior exemplo de cristão inclusivo por qual tenho um profundo respeito e admiração, presbítero de 83 anos, um dos pioneiros da Assembleia de Deus na minha cidade, com homenagem pela Câmara de Vereadores e tudo – depois de muito chorar durante minha “explanação”, me justificando por ser gay, e de ouvir suas considerações bíblicas sobre a questão, ele disse que me criou para seguir minha vida e ser feliz; posteriormente ele me questionou, curioso, se eu seria “o homem ou a mulher” da relação e dizendo que tinha um advogado na igreja dele, com mais de 40 anos, muito boa pessoa e trabalhador que ele podia “arranjar casamento” com ele pra mim, claro que achei graça e disse que não era assim (meu vô tem o impulso de querer casas todos os filhos, sobrinhos e netos).
Já discutimos sentados no sofá, assistindo ao programa do Malafaia – para quem ele contribui financeiramente – assistindo audiências públicas homofóbicas no Congresso e ele reconheceu que os homossexuais ainda têm muito que lutar pela conquista da igualdade e condenando os parlamentares teocratas, dizendo que estes deveriam “deixar os gays em paz”.
Pra mim, é um exercício diário de aprendizagem a convivência com as diferenças dentro da minha família e sei que pra eles também é. Eles não se metem na minha sexualidade e não tentam “me converter” e eu não me meto na crença deles e não tento fazê-los deixar de praticarem sua fé, já que me tornei ateu nesse processo de saída do armário.
Eu chorei duas semanas atrás quando o caso do menino Alex foi noticiado, chorei ontem, novamente, mais ainda, com a notícia que deu nome e rosto àquele garotinho por quem eu chorei anteriormente e, por fim, chorei mais uma vez com o relato/desabafo pessoal do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ).
No fundo, a maioria de nós, LGBTs, é diferente com trajetórias semelhantes. Trajetórias de quem tem que se esforçar nessa selva chamada humanidade para ser dupla, triplamente mais bem-sucedido na vida para compensar o uso que fazem de sua orientação sexual ou identidade de gênero para te desacreditarem e te forçarem a desistir da vida.
Fala-se muito em escolher ser gay e antes de eu ter orgulho completo de ser quem eu sou, eu dizia muito, como se pedisse desculpas por existir, que, se eu pudesse, eu não escolheria ser discriminado e correr o risco de ter o triste destino dos tantos Alex’s que nunca teremos conhecimento; hoje eu afirmo sem pensar duas vezes que se ser gay é uma escolha, então eu escolho, SIM, ser gay porque é por eu ser gay que hoje sou o que sou e estou onde estou.
É por ser gay que eu passei a questionar tudo e todos e deixei de aceitar tudo como verdade. É por ser gay que eu decidi me dedicar à luta contra as injustiças, discriminações e desigualdades para que um dia, mesmo que eu não esteja aqui para ver, ninguém tenha mais que sofrer e passar pelo o que eu passei para conseguir viver em liberdade. Luta esta que me levou a estar trabalhando há um ano no meu atual emprego, na Câmara dos Deputados, em que posso contribuir diretamente e internamente pela luta dos direitos humanos no país.
É por ser gay, inclusive, que eu pude ter a empatia de compreender a luta feminista e me dispor a estar ao lado das mulheres na luta por seus direitos, respeito e igualdade, incluindo a luta pelo direito de cada mulher decidir levar sua gravidez adiante, mesmo eu sendo fruto de uma tentativa de aborto.
Eu poderia perfeitamente questionar as verdades me impostas, lutar contra a discriminação e desigualdade não sendo gay. Mas se eu não fosse, eu os questionaria nossa sociedade patriarcal, machista e homo/transfóbica? Não sei. Não dá pra viver de hipóteses!
Alguns podem me perguntar como eu posso ser a favor da legalização do aborto, já que se o aborto tentado pela mãe minha tivesse sido bem-sucedido hoje eu não estaria aqui para fazer este relato. A resposta é simples: hoje eu simplesmente não existiria e, obviamente, seria impossível de eu ficar me perguntando como seria se eu tivesse existido. Como disse, não vivo de hipóteses.
Existência esta que foi brutalmente retirada do garotinho Alex que sequer pode compreender a intolerância do seu pai reproduzida por nossa sociedade e que atinge principalmente mulheres cis e pessoas trans: a violência de gênero; violência que lhe tirou a vida porque seu comportamento se assemelhava ao comportamento imposto socialmente ao gênero feminino, gênero que é colocado em uma posição subalterna e vergonhosa, como se ser mulher tornasse-as indignas de respeito e de direito à existência e à vida.
Para que um dia nenhum outro Alex sofra de violência física, psicológica, não tenha sua liberdade privada e sua vida retirada por ser diferente, eu tenho e sempre terei orgulho de ser gay!
Autor
Marcos Oliveira é ativista LGBT e membro do conselho LGBT da Liga Humanista Secular do Brasil. Twitter e Facebook.