‘Madame Oráculo’ e as mulheres de classe média

Texto de Ana Rüsche.

Durante o feriado, pensei bastante no que poderia trazer para vocês. Dicas de leitura são sempre bem-vindas, não são? Aí lembrei de Madame Oráculo, livro da Margaret Atwood que me impressionou bastante, embora agora, visto com olhares mais críticos, lá tenha suas muitas pontas soltas… Dessa maneira, compartilho algumas de minhas discussões internas com vocês.

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Margaret Atwood, autora de ‘Madame Oráculo’.

Margaret Eleanor Atwood é uma escritora canadense, nascida em 1939. Começou a publicar em 1961 e nunca mais parou! Tem uma profusão de romances, poemas, livros infantis, fez crítica literária, peças de teatro e roteiros para rádio e televisão. Inclusive, tem um perfil no twitter considerado muito influente: @MargaretAtwood.

Nos anos de 1970 a 1990, poderíamos dizer que o “falar de mulher” é marca da sua obra. Parte da crítica a recepciona como feminista e, sem dúvida, não dá para pensar em alguns de seus livros sem ter em mente as profundas alterações no status das mulheres no século XX. Só para complementar, recentemente, lá pelos anos 2000, há uma ruptura temática na sua produção e a autora incursiona pelo gênero da ficção científica, tratando bastante de apocalipses ecológicos e outras questões (os livros Oryx e Crake, O Ano do Dilúvio e MaddAddam), gosto bastante do segundo, dá o que pensar.

Madame Oráculo (Lady Oracle) foi publicado em 1976 e faz parte do primeiro trio de romances da autora, antes viriam The Edible Woman (1969) e Surfacing (1972). Nesta época, Atwood trabalha sobre as questões da condição social da mulher e de sua representação, mas dentro do universo feminino das mulheres de classe média norte-americanas e europeias: trata de casamento (sim, ainda!), da configuração do corpo dentro de regras estéticas rígidas, das maneiras de ocupação do espaço privado, etc.

Se me perguntarem qual o interesse nessa leitura, diria que é observar melhor a ideologia que acompanha a transição histórica da consolidação das mulheres de classe média no mercado de trabalho, sem a garantia da tão prometida equiparação aos homens – você enxerga muita resistência em admitir esse papel subalterno, ao mesmo tempo em que não se consegue enxergar uma superação possível da condição que não seja a destruição de seus próprios privilégios. Lady Oracle traz essa discussão: a impossibilidade de emancipação feminina, mas dentro de uma visão liberal do conceito de “emancipação”, pois a protagonista está fadada a suportar os aprisionamentos de sua classe e condições sociais.

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O romance narra a história de vida de Joan Foster, escritora de romances pulp no estilo gótico sob o pseudônimo Louisa K. Delacourt (a Jeanne iria gostar), atividade que esconde de seu marido Arthur, depressivo e “pretenso intelectual perdido entre as teorias sociais e políticas de uma sociedade em transformação[1]”. Na infância, Joan era uma garota obesa com problemas de relacionamento com a mãe, tendo que suportar as maldosas coleguinhas de escola.

A narrativa inicia-se com Joan maquinando uma trama mirabolante que envolve sua própria morte durante um pequeno veraneio solitário na vila de Terremoto na Itália. Tomando sol à beira de uma sacada, na tradição ocidental trovadora, um local de passagem entre o espaço público e o recôndito privado, a narradora explica suas motivações: sendo constatada sua morte, obteria alguma liberdade que não possuía na vida casada sem maiores aspirações. Com a morte forjada, a união dos anseios que a dividiram em duas identidades (a escritora gótica e a esposa infeliz) seria finalmente possível, com o vislumbre para uma vida tolerável. Citando esse trechinho:

“Mas esta não era uma sacada romântica. Tinha um parapeito geométrico como aqueles dos prédios de apartamento de renda média dos anos cinquenta, e o chão era de cimento bruto já começando a erodir. Não era o tipo de sacada em que um homem ficaria embaixo tocando alaúde, ansioso, nem a escalaria carregando uma rosa nos dentes ou um estilete na manga[2]”.

O contraste entre a situação patética da narradora e seus desejos românticos é engraçado (geralmente, os textos da Atwood possuem um humor ácido), mas acaba reforçando as limitações sociais da narradora: sempre à espera de suposto amante “genuíno”, que a salve heroicamente da situação desconfortável. Veja, não estamos no século XIX e a protagonista também não é nenhuma boba, é bastante irônica a seu próprio respeito. Entretanto, não deixa de desejar sinceramente que seus amantes corporifiquem um herói… Conhece a história?

No fim, o romance produz a famosa configuração da tragédia rasa, uma tragédia sem o verdadeiramente trágico: uma desgraça sem apresentar um sentido maior histórico ou social, pois se resume a lamentar (inutilmente) a ausência de liberdade individual dentro de uma noção de liberdade e de felicidade definidas ali no quadradinho.

Acho que a discussão sobre esses romances é muito boa, pois faz com que possamos pensar com mais perspectiva sobre muitos assuntos. Encontrei dois outros textos que comentam o enredo da obra: Madame Oráculo e Madame Oráculo e seus labirintos.

Até a próxima!

Referências

[1] HOSSNE, Andréa, Bovarismo e Romance, Madame Bovary e Lady Oracle. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 52.

[2] Tradução de Domingos Demasi citada em HOSSNE, Andréa, Bovarismo e Romance, Madame Bovary e Lady Oracle. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 49.