Texto de Eliana Dockterman. Tradução de Bia Cardoso. Publicado originalmente com o título: ‘There’s a Reason There’s So Much Rape on Your Favorite TV Shows’ no site Time.com em 10/04/2014.
ALERTA DE SPOILER! Esse texto revela informações sobre as temporadas atuais dos seriados americanos: The Americans, Scandal, Top of the Lake e House of Cards. Além de citar acontecimentos em Game of Thrones, Downton Abbey, Veronica Mars, Buffy e Mad Men.
Esse ano, na TV, personagens femininas foram obrigadas várias vezes a encararem situações de estupro em seu passado. Um enredo que reflete como nossa sociedade está finalmente confrontando a cultura do estupro.

Há uma quantidade enorme de cenas de estupro na televisão americana este ano. Embora esperemos esse tipo de enredo em seriados jurídicos como Law and Order: SVU, abusos e agressões sexuais tornaram-se elementos importantes nas tramas de seriados dramáticos como: The Americans, Scandal, Top of the Lake, House of Cards, Game of Thrones e Downton Abbey. Em todos esses seriados, houve cenas importantes que envolveram estupros. Alguns têm rejeitado essa tendência como um meio fácil para a criação de tensão, drama e simpatia. Junto com a morte e a tortura, o estupro está no mesmo nível das piores coisas que podem acontecer a um personagem.
“Agora, em várias cenas de estupro que vemos atualmente na TV, temos personagens femininas que são identificadas pelo público como frias, impiedosas e calculistas. Estas personagens são chamadas de mal-amadas ou até mesmo odiadas pelo público”, diz Lisa Cuklanz, professora da Boston College e autora do livro ‘Rape on Prime Time’. “Quando tomamos conhecimento de sua situação anterior de vítima de abuso sexual, essa nova informação serve para humanizar a personagem”.
Elizabeth (The Americans), Mellie (Scandal), Robin (Top of the Lake) ou Claire (House of Cards), todas elas cabem no estereótipo de mulheres fortes, mas frias, que podem ser difíceis de amar. Mas, às vezes, a estratégia de usar uma história de estupro para angariar simpatia tira seu valor, como muitos apontaram no início deste ano, quando um flashback em Scandal mostrou Mellie sendo estuprada por seu sogro.
Porém, eu não acho que essas sejam as reviravoltas habituais. Há algo diferente sobre esses estupros. Considerando que estamos habituados a ver ou ouvir sobre violência sexual em tempo real e ver como essas questões influenciam as personagens, agora os roteiristas de TV gostam de reviver estupros que aconteceram antes da cronologia da série. No caso de The Americans, Scandal, Top of the Lake e House of Cards, a trama apresenta uma mulher que deve enfrentar uma agressão sexual que aconteceu há anos, até mesmo décadas atrás. Nós não vemos o ataque em tempo real, mas sim em um flashback (ou nem isso). Essas mulheres já lidaram com as conseqüências, enterrando a sua dor e seguiram em frente com suas vidas. Somente quando seu estuprador ressurge (The Americans, House of Cards) ou uma nova circunstância se apresenta, como investigar um crime ou uma entrevista que desperte a lembrança do incidente (Top of the Lake, Scandal) é que o “enredo do estupro” começa.
E, essa mudança na forma como agressões sexuais são retratadas não é mera coincidência. A telinha reflete o que está acontecendo em nossa sociedade em uma escala maior. Culturalmente, estamos enfrentando o grande e enterrado problema do estupro de novas maneiras — exatamente como essas personagens fictícias. A idéia de “cultura do estupro” surgiu nos últimos anos como um importante tópico de conversa e debate. O caso Steubenville, agressões sexuais nos campus universitários e denuncias de abusos sexuais nos meios militares trouxeram o velho problema do estupro a tona na mídia. Vimos histórias onde personagens vingam-se de um estupro (Veronica Mars), salvam a si mesmas ou outros de um estupro (Buffy), ou usam o estupro como uma reviravolta na história de um casal (Mad Men). Mas, esse novo estereótipo de sobreviventes de estupro que lidam com as conseqüências de seu ataque a longo prazo parece relacionar-se diretamente com nossa cultura.
Como Joel Fields, produtor de The Americans — um drama de espionagem da Guerra Fria — aponta: “Atualmente, existe um esforço no vocabulário popular para parar de se referir as pessoas como vítimas de agressão sexual e passar a se referir a elas como sobreviventes de agressão sexual. E isso realmente se aplica a Elizabeth”. Apesar disso, Joe Weisberg, criador e principal roteirista da série, diz que não escreveu o enredo como uma jogada de simpatia, mas como um segredo há muito escondido que a teria impedido de tornar-se mais próxima de seu colega espião e marido, Philip.
“Seria algo que ela reprimiu”, diz Weisberg. “Em nossa história, eu acho que grande parte de nossos pensamentos envolvem a ideia que reprimir esse evento pode ser uma grande parte do que a separava de seu marido ao longo dos anos”. Apenas quando Elizabeth revela esse segredo para seu marido, o casal é capaz de começar a fechar o abismo que existe entre eles.
The Americans levou a questão para outro nível nesta temporada, já que Elizabeth continua seu processo de cura através de um modelo bizarro de terapia, em que ela se disfarça como uma vítima de estupro, a fim de obter informações a partir de um alvo.
“Disfarçada, Elizabeth começa a falar com Brad sobre o estupro e o ressignifica de uma forma inconsciente e consciente, ao mesmo tempo. Mas, disfarçada e na posição de outra pessoa, ela é capaz pela primeira vez de expressar e explorar alguns desses sentimentos neste ambiente bizarro, paralelo e seguro para ela”. Diz, Fields.
Como uma espiã, Elizabeth interpreta a vítima que tradicionalmente é vista na televisão — uma tentativa descarada de angariar simpatia. Mas Elizabeth, a esposa e mãe, se esforça profundamente para resolver seus sentimentos em relação a seu estupro. Elizabeth pode se consolar com o fato de que seu marido matou seu estuprador; em House of Cards, Claire pode se parabenizar por seu plano para justificar um aborto e retaliar seu agressor, ao mesmo tempo em que anuncia seu nome em rede nacional; em Top of the Lake, Robin pode respirar com mais facilidade sabendo que o homem que orquestrou uma rede de exploração sexual com menores de idade, morreu; em Scandal, Mellie — bem, pelo menos o sogro finalmente morreu.
Porém, essas mulheres realmente começam a se curar quando seu segredo é revelado — ao mundo, a seus maridos ou a um confidente, não quando elas promovem vingança. Elizabeth e Philip aproximam-se em The Americans quando ele descobre sobre seu ataque; em House of Cards, Claire fica mais forte e decreta vingança contra seu agressor sem o marido (considerando que normalmente ela deve seguir os esquemas conspiratórios que seu marido comanda); em Top of the Lake, a temporada termina com Robin pronta para ajudar a criar uma criança resultante de um estupro coletivo (depois de desistir de seu próprio filho, há muitos anos); e em Scandal, Mellie encontra conforto na escolha do marido para o candidato a vice-presidente, Andrew — o único que sabe sobre seu estupro. Conscientemente ou não, este é o reflexo do esforço de nossa sociedade para desenterrar situações de abuso sexual antigas ou novas, é uma maneira de lidar com o fato de que por muito tempo casos de estupro eram varridos para debaixo do tapete. Só então poderemos começar a nos curar.
Autora
Eliana Dockterman é repórter da TIME em Nova York. Siga-a no twitter: @edockterman.