Texto de Camilla de Magalhães Gomes.
Eu bebo sim. E bebendo ou não, meu corpo é meu.

Eu, minhas amigas, sua mãe, suas amigas, a colega de faculdade, a chefe e qualquer uma que beba, exagere ela ou não. Somos todas donas de nossos corpos. E essa autonomia inclui o direito de usar as substâncias que desejar e, ainda que sob efeito dessas substâncias, de reivindicar que meu corpo continuará sendo meu.
MAS
Bebendo ou não, usando drogas ou não, estando na balada ou não, continuo podendo ser vítima de um estupro. Meu comportamento pode até ser incoveniente, ou incorreto de alguma forma nessa cena, mas NUNCA como fator de causa do estupro, mas SIM como mais um meio utilizado pelo estuprador para alcançar a demonstração de poder pretendida. Por isso mesmo, o Código Penal reconhece que há esses casos em que o estupro é mais grave, por haver o aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade da vítima — o “estupro de vulnerável”, que é crime, independente de consentimento ou não.
A manchete do jornal diz: “Risco de estupro triplica com embriaguez, diz levantamento”. Em seguida os dados: Mulheres que abusam do álcool têm 3,6 vezes mais chances de serem vítimas de estupro, revela um novo recorte do Levantamento Nacional de Álcool e
Drogas. Quando as mulheres já têm um diagnóstico de dependência de álcool, as chances de sofrerem violência sexual sobem para cinco vezes.
“”Risco de estupro”, portanto, é uma expressão perigosa, equivocada e culpabilizadora. Dizer que uma mulher bêbada corre mais “risco de ser estuprada”, como corre mais risco de ser atropelada aquela que atravessa fora da faixa (sim, a comparação com o “sair da linha” foi proposital) é colocar o foco — e a culpa, ela aqui de novo, sempre! — na mulher estuprada e não no estuprador. É ignorar que não há aí uma “situação de risco” criada pelas mulheres que se embriagam, mas sim um fator a mais na gravidade da conduta do autor do crime, que se utiliza justamente dessa condição vulnerável — momentânea ou não.
Então, há uma nova pesquisa, ainda não publicada, que diz que o “Risco de estupro triplica com embriaguez”. Ou melhor, se a pesquisa diz assim, com essas letras, não sei. Mas a mídia decidiu publicizar desse jeito. Pesquisas polêmicas sobre mulheres parecem que rendem assunto, não é mesmo? Sem crítica, sem aprofundamento, sem debate, sem acesso ao link para pesquisa — que nem foi lançada ainda — que aí o barulho é rápido, a desinformação é garantida e o desserviço também.
“Sob efeito do álcool, 89% das mulheres não evitam situações de risco”. E são as mulheres que precisam “evitar situações de risco”? Uma frase dessas, com aparente pretensão de servir como “alerta” ou “proteção” às mulheres só reforça a culpabilização, agora somada com o discurso moralista sobre “o aumento do consumo do álcool”.
Aliás, pergunto para que serve a parte final da matéria senão para condenar as mulheres que saem da linha? “Segundo Ronaldo Laranjeira, professor titular de psiquiatria da Unifesp e coordenador do levantamento, o aumento do consumo de álcool por mulheres reflete a maior frequência do ato de beber socialmente, e não em casa. ‘Mulheres que socializam como homens estão bebendo tanto quanto eles’.”
Voltemos pra casa, socializemo-nos “como mulheres” — sempre nos mantendo na linha — e estaremos seguras. Claro, estupros só acontecem porque as mulheres se colocam vulneráveis, estupradores apenas fazem o que se espera deles.