Pelo aborto legal, gratuito, seguro e fabuloso

Texto de Clara Cuevas para as Blogueiras Feministas.

Jandira Magdalena dos Santos Cruz e Elizângela Barbosa são duas mulheres mortas pela hipocrisia e pela criminalização do aborto. Após a midiatização de suas mortes — que mais pareciam um aviso: “Mulher morre depois de abortar” — encontrei vários comentários na internet a respeito. Haviam os clássicos comentários humanistas que faziam questão de comemorar suas mortes: “Está vendo, olha o que acontece com mulher que aborta” ou “Bem feito, assassina! Quem mandou”. Mas haviam também aquelas boas almas que diziam: “Eu não aprovo o que ela fez mas, sinto por sua morte”. Houve também a comoção da esquerda feminista que as defendiam nesse espetáculo de comentários horrorosos: “Ninguém deseja abortar, porém queremos o direito de abortar de forma segura”.

É sobre este último discurso que escrevo. Este discurso que se intitula empoderador, mas que, na prática, conjuga com a moral que obriga a mulher a se sentir culpada. Sinto dizer para as defensoras dos poréns, mas abortar nem sempre é um drama. Abortar é um drama para quem tem que fazer o procedimento escondido, sem dinheiro, em clínicas clandestinas e ainda correndo o risco de ir presa. Aborto seguro, gratuito e sem traumas existe. E há mais, existe o aborto sem culpa e ele é fabuloso.

A misoginia é tamanha que uma mulher que aborta ou que luta pelo aborto deve forjar a própria culpa. É como se a discussão sobre os direitos não-reprodutores só pudesse começar se precedida por um: “Sei que é errado, mas…”. O que quero afirmar é que é possível abortar sem poréns. Quantas mulheres conheço que abortaram uma, duas, três, quatro vezes… e estão hoje em dia lindas e dignas por aí, com ou sem filhos, casadas ou solteiras. Felizes da vida.

Manifestante a favor do aborto segura cartaz com os dizeres: "Meu aborto foi fabuloso. Obrigada". Imagem: Jess / Tumblr Hostilehottie.
Manifestante segura cartaz com os dizeres: “Meu aborto foi fabuloso. Obrigada”. Imagem: Jess / Tumblr Hostilehottie.

Se formos discutir aborto é preciso esvaziá-lo dessa hipocrisia moralista que diz que a mulher se deprime porque matou a pobre criancinha que orava o pai nosso com as mãozinhas em súplica em seu ventre. É preciso parar de culpabilizar a mulher que aborta e parar de embutir uma culpa psicológica por ter “decidido” abortar, como se de fato essa “decisão” fosse, em nossa hipócrita sociedade, deliberada, autônoma, sem nenhuma objeção política, pública ou financeira.

Há muitos poréns para a mulher que aborta. Ela pode entrar em depressão porque naturalizou desde a infância que abortar é errado e não porque abortou. Pode adquirir traumas pela violência que sofreu porque abortar no Brasil, que trata o aborto como crime, se você for pobre é sofrer violência. Por estas terras a morte e o trauma são uma punição social para a mulher que aborta.

Se mulheres morrem ou têm traumas ao fazer aborto é porque o procedimento é rodeado de violência. Primeiro, fazer um aborto é cometer um crime, logo, ao “optar” por realizar aborto você “opta” por ser uma criminosa. Em segundo lugar, justamente por ser um procedimento ilegal é caro. Quem tem dinheiro faz a cirurgia, que é simples, em um hospital qualquer, com um médico conhecido, privado, e sua cirurgia constará no prontuário como um procedimento legal qualquer. Em terceiro lugar, se você não tiver apoio de amigos ou familiares, vai ser tudo muito difícil, como é difícil fazer qualquer cirurgia cara em um lugar clandestino e sem apoio de ninguém.

O que quero dizer é que os riscos e os problemas psicológicos relacionados ao aborto são frutos do procedimento criminalizado, estigmatizado e clandestino e não pelo procedimento cirúrgico em si. Pensem nas cirurgias que o SUS não cobre e que as pessoas fazem clandestinamente pelas clínicas mundo afora, por acaso estes procedimentos não criam traumas? Aliás, obrigar estas pessoas a procurarem a clandestinidade para efetuar procedimentos cirúrgicos já não é em si uma violência?

Se não bastasse tudo isso, a esquerda mais aborto friendly diz: “ninguém quer abortar, mas temos que garantir um aborto seguro”. E se por acaso eu lidar bem com o aborto, sou uma pessoa pior por isso? E se eu fizer do aborto minha prática anticoncepcional, não deveria em tese ter suficiente liberdade para isso, “meu corpo minhas regras”? E se além de tudo isso eu quiser abortar tanto, mas tanto que monto uma clínica de aborto só pra mim, por acaso isso não deveria ser problema somente meu? Por acaso eu mereço a morte por querer abortar?

Aborto de qualidade, com apoio e seguro pode ser ótimo. Aborto existe, é uma prática recorrente, mas apenas mulheres pobres morrem por isso. Mulheres de classe média/alta que abortam (algumas mais de uma vez) estão muito bem, obrigada. A forma de lidar com o aborto não é “humana”, como que essencialmente todas as mulheres que abortam sofressem traumas ou sentissem culpa. E só observar os países em que o aborto não é considerado crime. O Uruguai comemorou o índice de zero mortes pelo procedimento depois que o aborto foi legalizado. Em Cuba o procedimento é legalizado desde 1965 e o país possui baixíssimo índice de mortalidade materna. Em muitos destes países este assunto nem é mais uma questão. Aborta-se.

Insisto, se há traumas é porque sofremos violência em todo o procedimento e porque naturalizamos que aborto é errado. Sem a culpa cristã que atinge até as mais esquerdistas das mulheres, o aborto é apenas um procedimento cirúrgico e como tal oferece todos os riscos e possibilidades de qualquer procedimento cirúrgico. Afirmar que a mulher sofre naturalmente ao fazer aborto é boataria para aumentar o medo e a ignorância e sabemos historicamente que o medo e ignorância só aumentam a violência e fomentam a morte de mulheres.

É preciso descolonizar o debate sobre o aborto, mas é necessário principalmente descolonizar os desejos e as vontades. É preciso lutar não só pelo direito de decidir, mas de querer. O debate que culpa as mulheres ou que torna o aborto algo reprovável só beneficia a misoginia intrínseca ao Estado, já que despolitiza a questão e o que deveria ser uma reivindicação política, justa e urgente contra um Estado assassino torna-se o debate moralizante de “Sei que é errado, mas…”. Estas mortes, destas centenas de Jandiras e Elizângelas diárias, são mortes políticas e devem ser levadas a sério enquanto tal. Existe em andamento absurdos processos criminais contra mulheres que realizaram o aborto. Mulheres pobres. Mulheres sem o direito de decidir e muito menos o de querer. É preciso descolonizar o aborto. Pelo aborto legal, gratuito, seguro e fabuloso. Sem poréns!

Clara Cuevas.
Clara Cuevas.

Autora

Clara Cuevas é anarquista, perrorista, felinista, brasiguaia antinacionalista e historiadora das histórias que poderiam ter sido. Tem o blog Por Uma Vida Menos Ordinária e o tumblr Lux et Voluptas.