Texto de Vanessa Rodrigues para as Blogueiras Feministas.
Demorei mais de um ano pra pensar direito sobre isso. E, agora mesmo, sigo refletindo enquanto escrevo. Sem conclusão. Este será um texto incompleto, portanto.
Dos 4 aos 10 anos de idade devo ter sido uma das crianças mais solicitadas pra entrar como daminha nos casamentos em Pirapora (MG), minha cidade natal. No entanto, o que sempre foi um detalhe cômico, mas lá com um certo charme provinciano das historias de infância do interior, acabou caindo num desses lugares comuns frustrantes e constrangedores. E já nem sei direito o que fazer com essa lembrança.
Depois de bem uns 5 anos sem voltar (desde a morte do meu pai), passei uns dias de julho na casa da minha mãe. Num sábado de tarde, na manicure, entra uma mulher acompanhada de duas filhas adultas, me olha, me cumprimenta com ternura e diz:
“Você se lembra de mim, né?!”
Não me lembrei de onde, mas sabia que sim, a conhecia. Numa segunda olhada, momentos depois, tudo me veio à memória. Ela tinha sido uma das noivas, bem uns 35 anos antes. Uau.
“Claro que me lembro!”
E partimos pras reminiscências. E ela dizendo que naquela época só dava eu nos casamentos. Que no dela eu usei um vestido branco com vermelho, inesperado pras pessoas. Que ela condicionou o casamento à minha presença e que eu era grife. Quase pé quente pros casórios.

Tá. Nesse momento eu já queria me enfiar no tubo de acetona. Mas, né. “Sorria e acene” é meu lema em situações assim. E estava carinhoso, apesar de tudo. Até que ela completou. E foi aí que me descolei daquela conversa. E foi aí que me veio meu pequeno nó, que carrego ainda.
“Também, com rostinho de boneca e loirinha de tudo. Quem não queria?”
Sei com toda certeza que desmanchei meu sorriso simpático na hora. Aliás, posso perfeitamente me colocar fora de mim e visualizar minha reação facial, como se tivesse acontecido com outra pessoa. Não sei o que mais me afetou. Se o racismo daquela frase que, embora mais no subtexto, é estrutural e suficientemente potente pra me agredir, ou mesmo o quanto aquela imagem da “menina loirinha” já me parecia tão longe de mim.
Já contei aqui do meu processo de auto identificação étnica e racial, que se tornou mais urgente e inexorável nos últimos anos, no qual reflito sobre meu embranquecimento, meu enegrecimento e acontecimentos difusos, mas contínuos, de preconceito que vivenciei ao longo da vida, culminando com o meu filho negro que já foi vítima de uma situação muito violenta de racismo. E essa menina, que era a escolhida como daminha também pela cor da sua pele e cabelo, vai se tornando cada vez mais estranha em minha lembrança. Um dia eu fui. Não sou mais. E isso é tão flagrante pra mim que sempre espero que o seja para o outro.
E não mais sê-la, mesmo tendo sido e sabendo o quanto isso impactou muito da minha trajetória, ainda está aqui, cutucando meu processo, me apontando as contradições, meus privilégios, meus conflitos e paradoxos — meus, do mundo —, minhas vivências, minhas lembranças e a pessoa que sou hoje.
Nesse caminhar só posso agradecer às mulheres negras incríveis que me acolhem em minha busca, que me apoiam, me legitimam e me reconhecem. Agradeço às amigas e companheiras do Círculo de Mulheres Negras, que realizamos todos os meses na Casa de Lua, à Bianca Santana, que me deu a mão no caminho e nunca soltou, e à Jarid Arraes, que quando me conheceu disse: “Nem precisa dizer que você se autodeclara negra. Eu olho pra você e vejo.” ❤
Autora
Vanessa Rodrigues é jornalista, co-fundadora da Casa de Lua e gostosa. Atualmente escreve no Brasil Post e no Biscate Social Club. Também pode ser encontrada no Facebook e Twitter.