O machismo e a presidenta

Texto de Máira Nunes para as Blogueiras Feministas.

Maria Antonieta, a conhecida rainha francesa do “não tem pão, que comam brioches”, foi alvo constante da fúria midiática do seu tempo. Muitas publicações a retratavam como adúltera, lésbica, satânica, ninfomaníaca, prostituta e incestuosa. A “fúria vaginal” da rainha era usada como arma política para enfraquecer o regime e estimular a revolução.

Esta artimanha se tornou uma prática comum na mídia: reduzir a política a personalidades. No Brasil, esta simbologia tem sido explorada pelas charges há bastante tempo e ganhou uma abordagem especial ao tratar da presidenta Dilma. Desde sua primeira candidatura, Dilma tem sido alvo da malícia da imprensa e da população. Retratada como uma mulher sem carisma, sem sex appeal, suas ações políticas são frequentemente associadas à limpeza e faxina, o que não aconteceu com os presidentes homens. Isso reforça a ideia de que limpeza/faxina são atributos apenas femininos e diminui a importância política de termos uma mulher na presidência da república.

Seu segundo governo está sendo marcado pela crise política e tanto a grande mídia quanto as redes sociais estão produzindo conteúdos violentos direcionados a ela. Sabemos que o jogo político é duro e que a personalização é uma estratégia usada contra todas as figuras públicas da política, porém o machismo das críticas à Dilma é algo que precisamos observar com cuidado. No final de junho foi divulgada a venda de um adesivo para carros que, ao ser colado no tanque de gasolina, simulava a penetração sexual no “corpo” da presidenta. A circulação da foto do adesivo gerou grande repercussão e foi denunciado pela Ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Política para as Mulheres. O site de compras Mercado Livre retirou o anúncio do ar, divulgando que poderia configurar crime de difamação (injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro).

Charges do Dennis, 23/11/2010.
Charges do Dennis, 23/11/2010.

A investida mais recente contra a presidenta foi a publicação do texto “Dilma e o sexo” pelo jornalista e editor da revista Época, João Luiz Vieira. O texto, que relaciona a ação política e a habilidade de governo ao erotismo e à sexualidade, teve repercussão negativa e foi retirado do ar no mesmo dia. O que interessa para nós aqui é a sua argumentação central: para fazer o jogo político Dilma precisa se erotizar.

O jornalista João Luiz é pós-graduado em Educação Sexual e possui várias produções na área da sexualidade. É um expert. Talvez por isso tenha feito essa escolha bem equivocada de evocar a sexualidade da presidenta para discutir suas habilidades politicas. O autor começa o texto citando Nietzsche e Oscar Wilde para defender sua tese: “Dilma, erotize-se”. Segundo sua lógica, o motivo da insatisfação popular é a sua incapacidade de criar uma comunicação erótica com o povo: “eles querem que ela expresse uma sexualidade, uma comunicação corporal que crie empatia, proponha, acrescente, acolha”.

Ora, a política é um jogo masculino e sabemos que a maioria das estadistas passaram por um processo de “masculinização” e “dessexualização”. Dilma, que já era uma mulher considerada dura, fez um caminho inverso, abrandou-se ainda na campanha para tornar-se mais amigável ao eleitorado. Mas, pelo visto, não foi o suficiente. É preciso mais. Segundo o autor, é preciso não só expressar sua sexualidade, mas também ser desejável.

“Será que Dilma devaneia, sente falta de alguém para preencher a solidão que o poder provoca em noites insones? Será que ela não se ressente de um ser humano para declarar que quer mandar todo mundo para aquele lugar, afinal ela não tem como dizer isso para o neto, supostamente seu melhor amigo, que ainda nem sabe ler? Será que ela não sente falta de comer pipoca enquanto assiste suas séries de TV paga, que tanto ama e a faz relaxar das pressões inerentes ao cargo?”.

Segundo essa lógica, a presidenta não apenas não tem um parceiro sexual como também não tem ninguém com quem compartilhe a vida. Não tem amigos, amigas, companhia com quem possa dividir o fardo da existência. Por que, afinal, quem somos nós sem sexo? Quem somos nós sem o olhar de desejo do outro? Ninguém.

E é aí que começa realmente a aparecer a armadilha do texto. Dilma ousou terminar sua sexualidade, ao contrário de tantas mulheres acima dos 60 anos que ainda “exalam erotismo”. O autor cita Jane Fonda e Marta Suplicy, escolhidas como exemplo do bem que a sexualidade faz a mulheres erotizadas. E complementa: “Marta, aliás, quando ministra do turismo do governo Luís Inácio Lula da Silva, entre 2007 e 2008, até associou caos aéreo com preliminares. Lembra do “relaxa e goza”? Pois”.

Pois. João Luiz esquece de comentar que essa frase faz parte de um argumento maior: “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”. Voltamos ao ponto crucial do machismo: a mulher existe para ser objeto do desejo masculino. Deve estar sempre disponível e fazer todos os esforços possíveis, desde o “erotize-se” até o “relaxe e goze”. Não há espaço para uma vida longe do olhar sexual masculino, nem na política. A justificativa é a de que vivemos num país erotizado, então temos que dançar conforme a música.

Após analisar os casamentos, a vida sexual e até a vestimenta de Dilma (vista como um uniforme que nubla sua sexualidade), o autor termina com o seguinte trecho: “Diz-se que as amazonas, filhas de Ares, deus da guerra, cortavam um dos seios para manusear o arco e flecha e lutar. Ou seja, o feminino guerreiro precisaria extirpar a própria feminilidade. Não deveria, mas muitas vezes a exclui, e exemplos temos aos montes”.

É dessa forma que se constrói a discussão sobre a mulher no poder, reforçando uma estrutura machista. Essa mulher que ousa ocupar o poder está fora do seu lugar, por isso não governa, faz faxina; pode ser “penetrada” pelo povo e até ter sua sexualidade dissecada pelo jornalismo patriarcal. Mantemos a ordem vigente: continuamos com poucas mulheres no poder, e essas que estão lá continuam expostas a esse tipo de abordagem sexista. E com a análise do jornalista especialista em sexualidade fica o recado: o papel da mulher, seja no combate ou na arena política, é manter a feminilidade. Não precisa nem ser dócil e frágil, mas tem que ser sexy.

Charge de Elvis. Publicada no Amazonas Em Tempo. Abril/2014.

O fato do texto ter sido tirado do ar poderia ser visto como um bom sinal, mas não podemos nos enganar. O jornalismo brasileiro é muito machista e reforça uma série de estereótipos sobre a mulher. O autor do texto se aproveita do período de crise em que vivemos para reforçar o modelo de mulher-objeto, usando a presidenta como exemplo. Quer vender uma ideia de que tudo o que Dilma precisa fazer é tornar-se mais desejável para se aproximar do povo.

A cada parágrafo João Luiz ultrapassa os limites do bom jornalismo, investigativo e crítico, apelando para a invasão da sua vida privada, das suas relações pessoais, do seu corpo e das suas roupas. O texto não é apenas de extremo mau gosto, mas também um bom exemplo de como a mídia trata a mulher: como uma propriedade pública, à disposição de todos. Fala de seus ex-maridos, da filha e do neto, citando inclusive os nomes, fala de sua solidão, comparando seu perfil com o de outras mulheres públicas.

Não fala de política, não fala de governo, não fala de ações. Parte para o campo do privado, da alcova, do sexo para desqualificar a presidenta. Não é o primeiro e provavelmente não será o último. Da mesma forma que no jornalismo, a nossa política ainda é um espaço masculino. Mesmo sendo a maioria do eleitorado, temos uma representação feminina mínima nos três poderes. No Congresso são 51 deputadas (no total de 513) e no Senado 12 (no total de 81). As mulheres que participam da política são ameaçadas, atacadas e ridicularizadas.

Dilma é a primeira presidenta e sua vitória foi um marco importante para as mulheres, independente das questões específicas do seu governo. Como pioneira, está sujeita a todo o tipo de ataque. Como mulher, está sujeita a ter sua vida investigada com microscópio. Dilma é criticada por ser pouco sexual, da mesma forma que Maria Antonieta, a dos brioches, foi criticada por ser sexual demais. É assim que funciona o machismo. No jornalismo ou na politica, a mulher é sempre tratada como uma intrusa, é sempre diminuída, não importa de que forma.

É por isso que precisamos tanto ocupar esses espaços. Precisamos de mulheres em todos os cargos políticos, em todas as funções no mercado de trabalho. Precisamos de mais mulheres nas redações de jornal, nas agências publicitárias. E mais, precisamos de mais mulheres feministas. Só assim conseguiremos fazer frente a esse machismo para poder escolher se queremos nos erotizar ou não. E sermos respeitadas por isso.

Autora

Máira Nunes é 8 ou 80. Feminista, mãe, professora e aspirante a artesã. Aguarda ansiosamente o apocalipse queer.