Texto de Jéssica Borges para as Blogueiras Feministas.
Nós, pertencentes a minorias — em especial os privilegiados por sermos conscientes disso — somos sempre impedidos pela necessidade do respeito. Nos é clamado respeito a cada palavra dita. Quando nos levantamos e exigimos o mesmo, nos é dito que é preciso respeitar para sermos respeitados. E nós perguntamos em que momento não o fizemos. Que respeito é esse? A quem ele serve? Quem o define, o delimita?
A última vez que me foi clamado respeito, eu entendi que respeito era silêncio. “Eu me sinto desconfortável com o que você diz. Cale-se”. E quando você diz isso eu questiono: se eu falo das mulheres que amo e você se incomoda, quem ofende quem? Em que momento definiu-se aceitável classificar os sentimentos do outro como obscenos, como algo que deve ser cuidadosamente escondido? Como algo do qual eu deveria sentir vergonha. Mas se eu sentisse exatamente o mesmo por um homem, poderia? Poderia.
Embora se defenda ser intrínseca, essa ideia de respeito não é definida arbitrariamente. Tem como objetivo impedir que palavras de mudança sejam ditas. Que pessoas oprimidas, ofendidas ou humilhadas levantem-se. Às vezes me dizem que concordam com o que digo, com as mudanças que proponho, mas não pode ser feito assim. E então como será? Devo esperar quieta que meu agressor perceba sozinho que não deve me ferir? Sem uma palavra que lhe faça refletir? Devemos esperar que as operadoras parem de fazer cobranças indevidas num surto de consciência cidadã que eventualmente seus donos possam ter? Devemos simplesmente deixar que uma empresa de cerveja objetifique mulheres em suas publicidades? Devo manter a paz enquanto me agridem? Isso é paz para você?

Por vezes chamam nosso descontentamento de censura ou ataque à liberdade de expressão. Nós, que somos constantemente silenciados, seja com o argumento de que nos vitimizamos, seja com o argumento de que não é hora para discutir esse preconceito, pois ele ainda está muito enraizado. Estudante de arquitetura e ativista negra, Stephanie Ribeiro não se calou diante de uma prática racista, antiga no teatro, que ridiculariza e faz uma representação estereotipada do negro: o blackface. Tal prática estava presente na peça “A Mulher do Trem”, da companhia “Os Fofos Encenam”, em cartaz no Itaú Cultural. Imediatamente, sua publicação no Facebook e no texto Negro não é piada pra branco: chega de fofura seletiva ganharam visibilidade e fizeram com que o Itaú Cultural e a companhia suspendessem a peça e abrissem o debate “Arte e Sociedade: A Representação do Negro” no horário e local em que a peça seria encenada. Stephanie Ribeiro, artistas, intelectuais e representantes de “Os Fofos Encenam” foram convidados para conversar.
Quando, finalmente, os negros tiveram voz foram acusados de censura, através das redes sociais, por convidados e participantes da plateia. A recusa em ser representado de forma caricata foi considerada ignorância sobre a história do teatro e consideraram que Stephanie Ribeiro e outros negros empoderados estavam apenas falando de um assunto que não dominam. Ela, então, rebateu que o racismo é um assunto do qual os negros são os que sabem melhor e que, portanto, não deveriam se calar quando se tratasse disso. Para delinear bem esse conflito, um dos convidados, Dennis Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e coordenador do coletivo Quilombação, falou sobre o desconforto de muitas pessoas em relação às críticas à peça. Sua fala é libertadora para todos os que sabem o quanto pode ser transformador não calar-se. O trecho segue abaixo:
“Porque eu fico pensando assim. Se não fossem as heresias, as más criações, os desrespeitos, os incômodos, o mundo estaria muito parado né. Se não fosse a heresia de Galileu. Se não fosse o desrespeito à lei, dos mártires de Chicago, se não fossem as rebeliões, dos quilombolas, a gente estaria muito atrasado. Então viva aí a rebelião, censura, seja lá o que for, da Stephanie Ribeiro. Que ela que permitiu a gente estar aqui junto conversando. Incomodou muita gente? Incomodou. Mas os incômodos, sair dos lugares de conforto, é que faz a gente pensar. Então antes de a gente ficar desconfortável, pensar no desconforto, quem causou; pensar no que isso proporcionou de reflexão, de pensamento, de mudança, de posição. É assim que o mundo muda. Ficar preso ainda aos nossos lugares arraigados a gente não muda nada”.
Portanto, pergunto: o seu incômodo importa mais que o meu? Porque todos os dias, de todas as pessoas, estou suscetível a desconfortos por simplesmente ser. Incômodos, inclusive, causados por você, que me pede respeito silêncio. Pois então, minha resposta é: não, não vou me calar. E não vou desistir. Enquanto eu achar que esse incômodo, esse zumbido chato, lhe fará refletir, continuarei falando. E eu falo porque sei que o que eu digo não é ofensa. Continuará sendo dito, seja de forma natural ou para lhe sensibilizar da ofensa que você faz. Ou do seu silêncio quando alguém ao seu lado faz. Sei que é difícil para você. Esses preconceitos, essas marginalizações que fazem com a gente, já estão muito enraizados. Parece mesmo que eles são naturais e estão onde deveriam estar. Para desconstruir há que se esforçar, se movimentar, é difícil. Mas acha mesmo que é mais difícil para você que para mim? Eu ao menos estou tentando.
Autora
Jéssica Borges é estudante de Ciência da Computação na UFMG. Interessada em questões políticas e sociais desde a infância, se descobriu feminista e envolveu-se intensamente nas discussões sobre outras minorias desde que se compreendeu lésbica.