Moralismo, racismo e misoginia na novela Verdades Secretas

Texto de Vanessa Rodrigues para as Blogueiras Feministas.

A novela Verdades Secretas terminou semana passada e poderia ficar conhecida como a “novela da família brasileira” segundo o recém aprovado Estatuto da Família. Na trama central, que envolve pessoas ricas e uma agência de modelos, Angel (Camila Queiroz) era uma jovem de 16 anos que ao entrar para a carreira acaba no ramo da prostituição, conhecida como “book rosa”. Além disso, envolve-se com Alex (Rodrigo Lombardi), um homem bem mais velho e rico. Em determinado momento da trama, Alex se casa com Carolina (Drica Moraes), mãe de Angel, para continuar seu caso com a garota.

Ao contrário da comoção negativa com os beijos lésbicos de Babilônia, não houve nenhum repúdio ou movimento conservador contra Verdades Secretas. Pelo sucesso que fez, dá vontade de decupar cada cena, mas os textos dos críticos já apontam o quanto essa foi uma novela com embalagem moderna, mas extremamente moralista. Portanto, vou comentar especificamente sobre dois episódios que aconteceram na última semana, envolvendo personagens secundárias, mas que mostram muito da misoginia presente durante toda novela. Atenção, esse texto contem spoilers!

A direita, Larissa (Grazi Massafera). A esquerda, Lyris (Jessica Cores). Personagens da novela Verdades Secretas (2015) da Rede Globo.
A esquerda, Larissa (Grazi Massafera). A direita, Lyris (Jessica Cores). Personagens da novela Verdades Secretas (2015) da Rede Globo.

Larissa: a puta que encontra Deus.

Larissa (Grazi Massafera), modelo que começou a perder trabalhos e tornou-se usuária de crack, teve seu ponto de virada ao sofrer um estupro coletivo na Cracolândia. Desesperada, conta o fato ao namorado, Roy (Flávio Tolezani) que, entorpecido, praticamente não esboça reação. Larissa toma consciência de seu desamparo e decide se juntar ao grupo religioso que oferece comida e pregação no local.

Assustada e impressionada com a atuação de Grazi, comecei a me perguntar: qual o sentido daquilo pra narrativa? Por que Larissa precisava ser estuprada várias vezes numa mesma sequência? Pra querer sair da Cracolândia? Ela já não teria motivos suficientes? Se não, vejamos. Algumas cenas antes, a moça tinha recusado e respondido com deboche ao oferecimento de ajuda do personagem Emanoel (Álamo Facó), missionário que a acode depois do estupro. Quando ele lhe oferece a possibilidade de sair de lá, ela ainda o provoca, dizendo que faz coisas que ele nem imagina, como transar com homens para conseguir mais pedra. A puta “agredindo” o homem de Deus.

Não queria entrar no mérito de que essa “cura” vem pela religião, mas não sei se consigo, porque parece que tudo se mistura. Obviamente, onde o Estado não entra, outra instituição ocupa o espaço. E a religião tem desempenhado o seu papel na atenção e acolhimento a usuários de drogas, mesmo com os problemas da terceirização da saúde. Sei também que, embora a novela se passe em São Paulo, onde a Prefeitura tem realizado um trabalho com resultados positivos no controle de danos e recuperação de usuários, seria mesmo bem difícil que isso fosse sequer mencionado.

Mas, tampouco consigo sublimar a cena de Larissa implorando por “salvação”, ajoelhada com os braços estendidos com uma luz por trás, como uma Madalena arrependida pronta pra receber Jesus. O estupro de Larissa foi sua chegada ao fundo do poço, segundo o próprio autor, o que parece sugerir que ela provocou a violência. Afinal, ela “procurou” por aquilo ao usar drogas, viver naquele lugar e conviver com aquelas pessoas, né? Ela “procurou” por aquilo ao concordar em ir a um lugar ermo com um desconhecido atrás da droga. A culpa pelo estupro teria sido dela, portanto. Ela foi em direção ao fundo do poço. Mas, epa! Não deveriam ser os homens que a estupraram quem teriam chegado ao fundo do poço ao cometer uma violência dessas?

E, mais, sendo essa violência o catalizador para que ela procurasse ajuda, o que podemos presumir? Que o estupro foi necessário para que ela se tornasse consciente de sua situação e, portanto, teve impacto positivo em sua vida? Seria exagero ou uma incorreção fazer uma analogia com o “estupro corretivo”, já que essa violência a teria estimulado a buscar “o lado bom da força” e uma vida dentro da norma, com Cristo, sem drogas e, possivelmente, sem prostituição? Lembrando que ela já se prostituía antes, pela agência de modelos onde trabalhava.

Larrisa sempre foi Madalena. A metáfora da violência sexual como possibilidade de remissão de pecados para uma mulher que cobrava por sexo me parece bem explícita. Assim que concorda em acompanhar o missionário, Larissa é levada direto ao culto para fazer sua conversão. Ela tinha acabado de ser estuprada, estava ferida, suja e ensanguentada, e não foi sequer fazer um exame médico e tomar um banho! Não antes do culto. E, depois, essa parte fundamental de atendimento a uma mulher violentada não apareceu. Porque não importava para narrativa. “Limpar sua alma” era a prioridade.

Lyris: a negra punida com a morte pelo book rosa.

Não satisfeito, nesse mesmo capitulo, o autor ainda nos “brindou” com mais uma cena de violência brutal contra outra personagem feminina. Depois de  participar de um grande desfile, a modelo Lyris (Jessica Cores), única personagem negra da novela, foi assassinada a facadas pelo ex-noivo, Edgard (Pedro Gabriel Tonini). na porta do local do evento, o Museu Afro Brasil — numa “coincidência” cruel e cínica que só me dei conta quando comecei a escrever esse texto.

Lá pelo meio da novela, para esconder do noivo que tinha feito book rosa com Alex, Lyris inventou que ele a teria estuprado. Edgard tenta matar Alex mas é espancado pelos seguranças do empresário. No hospital, Lyris desmente o estupro e confessa que tinha se prostituído. O noivo termina o relacionamento. Esse fato acabou servindo para precipitar uma série de acontecimentos importantes para o andamento da novela. Porém, para o autor, parece que Lyris ainda não tinha sido condenada o suficiente. Depois de tê-la “perdoado”, Edgard esperava por Lyris na porta do Museu e ao vê-la sendo abordada por um desconhecido, supôs que ela continuava se prostituindo e se aproximou com uma faca, atingindo-a várias vezes no abdômen. Horas depois, Lyris não resiste aos ferimentos e morre no hospital.

Lyris acaba sendo mais uma personagem feminina num enredo de novela que morre por razões fúteis. Que ela seja a única personagem negra, acrescenta racismo ao caldo da misoginia. O autor poderia ter usado sua morte para denunciar e derrubar o esquema de prostituição na trama, mas nada disso foi feito, a alegacão final foi que o noivo era violento e ciumento, sendo que não havia nem contexto de relação abusiva. A função narrativa dessa morte foi apenas para lembrar as mulheres que uma de nós sempre pagará pelos “erros” das outras e na, maioria das vezes, será a mulher mais oprimida socialmente. Por que Lyris teve que morrer daquela maneira se, ao contrário do esperado, seu assassinato não foi nem usado para desmascarar Fanny (Marieta Severo)? Para mostrar o que pode acontecer com mulheres comprometidas que se deitam com outros homens, especialmente por dinheiro? Para ser mais um caso de “crime passional”?

Não me parece um detalhe banal que a modelo “punida” com a morte por causa do book rosa tenha sido justamente a única personagem negra da história — outros atores negros aparecem apenas como figurantes nas cenas da Cracolândia. E nem que tenha sido ela a escolhida para concretizar um dos folclores mais usados quando se quer desqualificar uma acusação de violência sexual: ela realmente inventou um estupro numa transa consentida. Em outra novela do autor, Amor à Vida (2013), Inaiá (Raquel Vilar) vivia uma enfermeira apresentada como promíscua que descobriu ter o vírus HIV. A personagem era a única negra que aparecia desde o começo da trama. O autor a “puniu” por sua diversidade de parceiros. O que me faz pensar o quão as histórias de Walcyr Carrasco são misóginas e racistas.

Em apenas um capítulo, tivemos duas personagens femininas “punidas” de forma bárbara por suas transgressões, com atos que caracterizam muito a violência contra as mulheres: violência sexual e violência doméstica. E, com as quais costumamos ser bastante culpabilizadas: estupro (ela provocou) e assassinato (ela mereceu). Porém, também tivemos violências mais leves, embora simbolicamente agressivas.

Mulheres presas a estereótipos machistas, racistas e moralistas

Houve o episódio do aborto de Pia (Guilhermina Guinle), com muita culpa, julgamento moral e a prisão do médico que tinha feito o procedimento. Pra completar, a personagem foi apontada por todos como o símbolo da mãe relapsa, que não percebeu que o filho estava se drogando. Ela mesma assume esse papel, culminando com um discurso “a la madre Teresa” no final. E o “personal”, que desde o começo pretendia engravidá-la pra dar o golpe do baú, posando de bom moço.

Fanny foi dopada pelo amante para perder seu grande momento de conquista na carreira, o desfile final. Ao ser abandonada por Anthony (Reinaldo Gianechinni) se ajoelha e implora para ele ficar. Depois, precisa de outro boy pra levantar a autoestima. Nesse momento, vira para o telespectador e diz: – Serve. Uma cena que foi celebrada nas redes sociais, mas que é frustrante quando pensamos em sua altivez. Sua agência atingiu o topo entre as concorrentes depois do desfile, mas realização mesmo só com um homem do lado.

Finalmente, olhemos para os finais das duas mulheres principais da novela: Carolina e Angel. Ao descobrir o caso da filha com o marido, Carolina se mata, pagando com a vida a pena pela própria ingenuidade. Aliás, sua morte foi também a punição de Angel, já que depositou sobre a moça a culpa por tudo o que tinha acontecido. Além disso, Angel precisou perder a mãe de maneira tão trágica para enxergar o ciclo de abuso que vivia e se libertar de Alex, matando-o. Para coroar, ela se casa com Guilherme (Gabriel Leone) no final, pois sua busca por felicidade precisa começar com um marido, mesmo que ela tenha apenas 17 anos de idade.

E, aí, me pergunto: de que adianta a estética moderna, se o antigo continua no enredo? Aliás, é mesmo tão inovadora assim uma novela pretensamente criativa na linguagem, mas que mantém a mesma lógica machista, racista e moralista das tramas mais tradicionais?

Eu, noveleira que sou, gosto de boas tramas, boa técnica, bom elenco. Posso lidar com lugares-comuns, desde que inseridos num enredo interessante, e consigo entender as limitações de certas obras. Mas, me sinto bastante desapontada quando vejo uma trama que se pretende mais contemporânea repetir os mesmo clichês, ainda que numa roupagem bonita e bem cortada de grife. Mais uma vez, o que vimos foi muito proselitismo. Em grande medida e, principalmente em seu final, Verdades Secretas parece ter sido um grande panfleto conservador, com discurso anti-drogas, anti-prostituicao e anti-aborto baseados no senso comum, religioso, com aspectos racista, machista e moralista. Um panfleto com nudes, é verdade. Mas, um panfleto, no final das contas.

Autora

Vanessa Rodrigues é jornalista, co-fundadora da Casa de Lua e gostosa. Atualmente escreve no Brasil Post e no Biscate Social Club. Também pode ser encontrada no Facebook e Twitter.

+ Sobre o assunto:

[+] Verdades Secretas e o papel da mulher na moderna novela brasileira. Por Iara Avila no Biscate Social Club.

[+] A verdade secreta é que a família brasileira não liga para abuso. Por Stephanie Ribeiro na Imprensa Feminista.