A irmã outsider Audre Lorde

Texto de María Ptqk. Tradução de Priscilla Brito, Iara Paiva e Jussara Oliveira. Publicado originalmente com o título: ‘La hermana outsider Audre Lorde’ na Pikara Online Magazine em 18/06/2013.

É sua a frase talvez mais repetida na história do ativismo: “As ferramentas do mestre nunca destruirão a casa-grande”. Mas também outras, mais incômodas, que questionam as bases do feminismo construído sobre as ruínas de uma supremacia racial que ainda não terminamos de nos desprender. “Porque eu sou uma poeta negra que faz o seu trabalho, eu vim aqui para perguntar-lhe: Você está fazendo o seu?”.

Audre Lorde, Meridel Lesueur e Adrienne Rich em 1980. Na cidade de Austin, Texas. Foto de K. Kendall.
Audre Lorde, Meridel Lesueur e Adrienne Rich em 1980. Na cidade de Austin, Texas. Foto de K. Kendall.

A figura de Audre Lorde ocupa, por razões diversas, um lugar central no feminismo contemporâneo. Primeiro porque ela é, junto com Angela Davis e Bell Hooks, uma das principais vozes do feminismo afroamericano. A partir das margens da academia – e da legitimidade que lhe dá a sua própria história – é também precursora da chamada crítica descolonial. Em segundo lugar, porque, apesar de estar firmemente enraizada nos acontecimentos que abalaram a sociedade americana nas décadas de sessenta e setenta (o movimento dos direitos civis, revoltas raciais, o surgimento dos Panteras Negras, Malcolm X e Martin Luther King, a emergência da contracultura e o despertar da segunda onda do feminismo), a voz de Audre Lorde é imortal. Uma voz que vai para o coração do conflito para nomeá-lo.

“Como mulheres, alguns de nossos problemas são comuns, outros não. Vocês, brancas, temem que seus filhos ao crescer se juntem ao patriarcado e testemunhem contra vocês. Nós, em contrapartida, tememos que tirem os nossos filhos de um carro e disparem contra eles a queima-roupa, no meio da rua, enquanto vocês dão as costas para as razões pelas quais eles estão morrendo”.

Sobretudo poeta, mas também ensaísta, conferencista e professora de literatura, Lorde escreveu uma dúzia de livros. Ela cresceu no Harlem [1] nos anos trinta, trabalhou como bibliotecária, teve dois filhos e, divorciada, começou a escrever. “Eu tinha que encontrar uma maneira de expressar meus sentimentos. Eu costumava decorar meus poemas. E dizia em voz alta, não os escrevia”.

Ela se apaixonou por uma mulher que seria sua companheira para o resto da vida em uma residência para escritores no Mississipi, onde Lorde chegou aterrorizada e da qual regressou convertida em autora. Morreu em 1992, depois de uma década de luta contra o câncer, deixando atrás de si uma obra profunda e íntima, de alcance multiplicador.

No ano passado, estreou em Madrid o documentário “Audre Lorde: os anos em Berlim, 1984 a 1992”, de Dagmar Schultz, que retrata os últimos anos de sua vida (quando foi para Berlim tratar um câncer de mama) e a sua influência para toda uma geração de feministas negras europeias. Mas em todo o mundo sua obra segue pouco conhecida. Suas citações traduzidas geralmente são da obra “Sister outsider”, sua emblemática compilação de artigos e discursos publicada pela primeira vez em 1984 e reeditada em 2007 (sem tradução no Brasil).

“Muitas mulheres brancas estão empenhadas em ignorar o que nos distingue”

Em um dos textos centrais de “Sister outsider, ‘Age, race, class e sex: women redefining differences”  (“Irmã intrusa, ‘idade, raça, classe e sexo: mulheres redefinindo diferenças”, sem tradução para o português), de 1980, Audre Lorde dá sua visão particular sobre a teoria da interseccionalidade.

“Quando as mulheres brancas ignoram o privilégio que supõe que elas são brancas numa sociedade racista e definem a todas as mulheres unicamente com base na sua própria experiência, nós, Mulheres de Cor [2], nos convertemos ‘nas outras’, umas estranhas cuja experiência é demasiado alheia para ser compreendida. Um exemplo é a significativa ausência de mulheres de cor em estudos de gênero. Muitas vezes, a desculpa é que a literatura das Mulheres de Cor só pode ser ensinada por Mulheres de Cor, e que é uma literatura difícil de entender porque provém de experiências ‘muito diferentes’. Escutei esse argumento da boca de mulheres brancas que não tem nenhum problema em ensinar sobre o trabalho de pessoas com experiências de vida tão díspares como Shakespeare, Molière, Dostoievsky ou Aristófanes”.

Ao analisar as diferenças das mulheres negras e brancas na sociedade estadunidense, Lorde insiste na necessidade de pensar nas divisões de gênero em conjunção com outras categorias de exclusão, que deem conta das muitas variáveis que definem a posição de cada uma de nós. “A palavra sorororidade”, diz, “pressupõe uma homogeneidade da experiência que na realidade não existe. No sistema patriarcal, os mecanismos que nos neutralizam não são iguais. Para muitas mulheres negras é fácil se ver sendo utilizada contra os homens negros, não por sua condição de homens, mas por sua condição de negros. A todo momento nós devemos diferenciar as necessidades dos nossos opressores dos nossos próprios e legítimos conflitos, como mulheres, no interior das nossas comunidades. Este problema não existe para as brancas”.

Além disso, às mulheres brancas é oferecido “um grande leque de opções e recompensas em troca de sua identificação com o poder patriarcal”. Para elas, diz Lorde, é mais fácil crer que “se é muito boa, ou muito bonita, ou muito doce, ou muito discreta, se ensina seus filhos a se comportarem, se odeia as pessoas certas, mas se casa com o homem adequado, lhe será permitido coexistir no patriarcado em relativa paz; ao menos até um homem necessitar do seu trabalho ou aparecer como o estuprador da esquina”. Contudo, Audre insiste, esta possibilidade tampouco se dá para as mulheres negras. “Para nós, a vida inteira está manchada de sangue. Nós não só nos enfrentamos na linha de frente, em becos escuros à meia-noite, ou em lugares onde nos atrevemos a expressar a nossa resistência. A violência é o tecido da nossa vida”.

Mas então, o que significa a diferença entre as mulheres para a luta das mulheres? Como construir um espaço comum se o lugar que ocupamos não é, nem pode ser o mesmo? Como podem as ferramentas de uma sociedade patriarcal e racista servirem para examinar os frutos desse mesmo patriarcado racista? Estas são as grandes perguntas que atravessam a obra de Lorde. “O que nos separa não são as nossas diferenças, e sim a resistência em reconhecer essas diferenças e enfrentar as distorções que resultam de ignorá-las e mal interpretá-las. Quando nos definimos, quando eu defino a mim mesma, quando defino o espaço onde eu sou com você e o espaço onde não sou, não estou negando o contato entre nós, nem estou te excluindo do contato – estou ampliando nosso espaço de contato”.

“Uma opressão não pode justificar outra”.

Mas não é só o racismo das mulheres brancas. Também há o sexismo dos homens negros, que acusam suas irmãs de debilitar sua luta comum, sua luta por igualdade racial. Em “Sexism: An American Disease in Blackface” (Sexismo: uma moléstia americana maquiada como negra, sem tradução para o português) , de 1979, Lorde articula sua resposta aos ataques provenientes da própria comunidade afroamericana:

“Nós, mulheres Negras, falamos como mulheres porque somos mulheres e não necessitamos de ninguém que fale em nosso nome. Há questões particulares que afetam as nossas vidas como mulheres Negras e falar delas não nos faz menos negras. Por que devemos absorver a raiva dos homens negros em silêncio? Por que sua raiva é mais legítima que a nossa? A ausência de um ponto de vista razoável e articulado dos homens negros sobre essas questões não é responsabilidade nossa. São os homens negros que devem tomar consciência de que o sexismo e a misoginia são um desserviço para sua liberação, porque provém da mesma constelação que o racismo e a homofobia”.

Audre Lorde em cena do documentário 'Audre Lorde: The Berlin Years 1984 to 1992.
Audre Lorde em cena do documentário ‘Audre Lorde: The Berlin Years 1984 to 1992’.

“Do que mais me arrependo são dos meus silêncios” declarou Lorde no final dos anos setenta, na tribuna de uma conferência sobre literatura e lesbiandade, que mais tarde seria o ponto de partida do seu texto “The Transformation of Silence into Language And Action” (“A transformação do silêncio em Linguagem e Ação”, sem tradução para o português). “Por causa do silêncio, cada uma de nós leva na cara a imagem do seu próprio temor: temor ao desprezo, à censura, aos julgamentos, à aniquilação. Mas, acima de tudo, o temor à invisibilidade. Nós, mulheres Negras, sempre temos sido muito visíveis, por um lado, e por outro somos invisibilizadas como consequência da despersonalização do racismo”.

“Há muitas maneiras de ser vulnerável e não posso evitá-las. Não vou me tornar ainda mais vulnerável colocando o silêncio como uma arma nas mãos dos meus inimigos”. E no outro lado do silêncio, para Lorde, está a poesia. “A qualidade da luz com que analisamos nossas vidas tem impacto direto no que vivemos. Nessa luz se formam nossas ideias. Isso é poético, entendido como iluminação. Por isso devemos aprender a respeitar os nossos sentimentos e transformá-los em uma linguagem em que possam ser compartilhados”.

Em uma entrevista com Adrienne Rich [3], Lorde confessará que até a publicação de “Poetry Is Not a Luxury” (“Poesia não é um luxo”, sem tradução em português), um dos seus textos mais belos, de 1977, não havia conseguido escrever em prosa. “Não podia. Comunicar pensamentos profundos em blocos lineares, sólidos, era superior a mim. Via o pensamento como um processo misterioso, do qual desconfiava. Eu tinha visto muitos erros serem cometidos em seu nome e cheguei a decidir não respeitá-lo. Além disso, me dava medo, porque eu tinha chegado a conclusões sobre a minha vida e os meus sentimentos que desafiavam a razão. Não queria perdê-las, porque eram inquestionáveis e demasiado preciosas pra mim, eram minha vida. Porém, tampouco podia analisá-las, porque não produziam o tipo de sentido que me ensinaram a esperar dos processos de entendimento. Eram coisas que eu sabia, mas que não podia nomear”.

“A poesia tem sido a voz dos pobres, da classe trabalhadora e das mulheres de Cor. Para escrever em prosa é preciso ter uma casa própria, mas também grandes quantidades de papel, uma máquina de escrever e muito tempo. Quando falamos para uma grande diversidade de mulheres, devemos estar conscientes do efeito que a classe e as diferenças econômicas tem sobre a arte que produzimos”. Em “Poetry Is Not A Luxury”, Lorde se confronta por fim com esses “blocos de pensamento linear” e explica para si mesma sua particular posição de poeta: “Os pais brancos nos dizem: penso, logo existo. Mas a mãe negra que levamos dentro – a poeta –, nos sussurra em nossos sonhos: sinto, logo posso ser livre. A poesia é essa destilação da experiência, com a qual nomeamos o que não temos, para sermos capazes de pensar”.

Notas da tradução

[1] Harlem é um bairro de Manhattan na cidade de Nova Iorque, conhecido por ser um grande centro cultural e comercial dos afro-americanos.

[2] Mantivemos o uso das maiúsculas e minúsculas, características da prosa de Lorde (Negra/o de Cor em maiúsculas, branca/o em minúsculas), assim como o uso exato das palavras Negra/o de Cor que tem conotação negativa no Brasil mas é largamente utilizada nos textos de Audre Lorde num sentido afirmativo.

[3] Adrienne Rich (Baltimore, 16 de Maio de 1929 – 27 de Março de 2012 ) foi uma feminista, poetisa, professora e escritora dos Estados Unidos. Saiba mais em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Adrienne_Rich

Autora

Maria Ptkq nasceu em Bilbao, Espanha, em 1976. É formada em Direito e Ciências Econômicas. Trabalha no setor de cultura desde 2000. Você pode conhecê-la mais por meio de seu site ou twitter.

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Esse texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual, convocada pelo Coletivo Audre Lorde.