Texto de Helena Viera.
Sou uma mulher trans. Tudo o que eu vivo, minha vivência é suficiente para explicar minhas dores e meus sofrimentos não é verdade? Mas será que essa vivência pode ser universalizada para dizer: ” É assim que pensam as mulheres trans” , ” É assim que sofrem as mulheres trans”, ” Isso afeta todas as mulheres trans”? Acredito que não.
A vivência, creio eu, é uma forma de produzir um “saber de si”, mas não pode se pretender um ” saber de todos”, e nem mesmo uma verdade sobre toda uma coletividade. Tenho visto a transformação das subjetividades e das vivências em ” dogmas” : se eu, que tenho vivência, digo que é assim, então é verdadeiro”. Não é, simplesmente porque essa vivência não pode ser universalizada.
Usar a minha vivência para enunciar sobre a coletividade é colonizar outras identidades. Essa organização discursiva de “verdade” a partir da vivência é apenas uma das muitas formas de discurso autoritário, que impedem a construção de uma prática política efetiva.

Não é na masturbação intelectual, ou no profissionalismo que implica com qualquer palavra, que vamos conquistar espaços de dignidade para pessoas trans. Ainda que neguemos, ainda que não nos agrade a função do Estado, ou que não acreditamos em política, só teremos emprego se houver uma organização política para isso, assim como só teremos acesso pleno a educação e a segurança através da conquista política de espaços de trabalho e educação.
Existem muitas iniciativas de ONGs para inserção na universidade e no mercado de trabalho para pessoas trans, mas são ações pontuais, não tem dimensão de uma política de estado.
Para construir isso, precisamos dialogar e isso precisa ir além das vivências, na tentativa de construir um saber sobre a coletividade que não seja colonizador, emotivo ou autoritário. Não dá pra exigir que todos nos escutem sem falar. Não acredito que nossas vozes empoderadas devam servir pra mandar ninguém calar a boca, mas para dialogar, fazer-se ouvir e ouvir em troca.
Essa ideia de que toda a verdade reside em um único discurso, apenas porque emerge de vivências, é autoritário, e dogmatiza a vivência, que deveria ser apenas uma lente de olhar com nuances.
A vivência nos situa frente a norma e aos discursos, mas ela não pode ser tomada como uma verdade sobre o outro.
Qualquer luta precisa criar unidade. Mas essa unidade jamais deve ser totalizante ou autoritária, mas um fluxo de unidade nas ações políticas, fluxo esse, que seja capaz de dialogar de forma não autoritária com outros espaços e movimentos.
Autora
Helena Vieira é travesti e transfeminista. Esse texto foi publicado em seu perfil pessoal do Facebook em 13/12/2015. .