Mulheres belas e fortes se foram… a marcha!

Texto de Florencia Maffeo. Publicado originalmente com o título: “Mujeres bellas y fuertes se han ido… ¡a la marcha!”, no site Marcha em 19/10/2016. Tradução de Bia Cardoso para as Blogueiras Feministas.

Argentina, 2016. Foto de Tadeo Bourbon/Site Marcha.
Argentina, 2016. Foto de Tadeo Bourbon/Site Marcha.

“Gritos por toda noite, o vizinho e um corpo. Na estrada de terra se vai. Mulheres bonitas e fortes se foram, meu amigo, e não voltarão”. Hoje #NósParamos e nos mobilizamos. Reflexões urgentes para um dia que será história.

“Você tem raiva por ter nascido mulher?”, me perguntou minha psicóloga, em meio a uma difícil sessão, fazendo referência a forma como o mundo tem me enxergado há 29 anos. Eu não entendi a pergunta, então, em seguida questionou: “Vamos ver, me fale sobre a história das mulheres de sua família, de suas avós. Como você as descreveria? Fortes? Sofredoras?”. Comecei a pensar. Se há algo que se destaca nas mulheres de minha família é o fato de serem trabalhadoras. Duas avós que trabalharam (uma delas ainda trabalha) desde jovens. Minhas bisavós também não ficam atrás, e a reconstrução dessa árvore genealógica me leva até uma tataravó anarquista. Mulheres que trabalham no campo, empregadas domésticas, operárias em fábricas têxteis e de tabaco, cozinheiras que mantinham butecos onde comiam operários de fábricas de tijolos, professoras e babás. Mulheres que também eram chefes de família, algumas sustentaram suas famílias sozinhas. O trabalho doméstico não era algo que pudessem evitar fazer. Cuidar das crianças após um dia de trabalho, organizar a casa, limpar, passar, cozinhar, costurar e fazer as roupas — que o salário não conseguiu comprar — para vestir filhas, filhos, netas e netos. Cozinhar para toda família, pôr a mesa e lavar os pratos enquanto os homens seguiam conversando sobre futebol e política.

Eu não estou com raiva por ter nascido com genitália feminina. Estou com raiva que meu útero, meus seios, os grandes lábios que cobrem minha vagina são marcadores da violência que sofro e que sofri ao longo de minha vida. Quando saio na rua e me assediam. Quando tive um chefe que olhava o comprimento de minha saia. Quando tive um companheiro que me dizia que eu era inútil e não compartilhava as tarefas domésticas. Quando o fato de ser mulher determina o meu salário, as áreas em que posso ou não trabalhar. Quando vejo que companheiras trans não podem sequer ter um salário, porque o mercado de trabalho as exclui sem razão. Quando fico sabendo de outras lésbicas que cometeram suicídio por não suportar a normatização heterossexual. Quando por nos identificarmos como mulheres, logo ouvimos “são todas putas”. Quando…

Hoje as mulheres vão parar. Deixaremos nossos trabalhos, fora e dentro de casa. Aumento de salários? Reconhecimento do trabalho não remunerado que fazemos dentro de nossas casas há milhares de anos? Lutar para ganhar o mesmo que os homens? Não, não e não. Hoje pararemos para que deixem de nos maltratar, violentar e nos matar pelo simples fato de termos nascido com uma vagina e/ou por nos identificarmos como mulheres. Nós, mulheres, travestis, trans e lésbicas nos recusamos a continuar sendo o objeto de ódio do sexismo estrutural dessa sociedade heteropatriarcal.

Muitas pessoas não gostarão. Em poucos dias virará piada. Nós sabemos que não. Temos certeza que vamos chamar atenção para o fato que administrar melhor o dinheiro da casa não é um dom natural, mas algo aprendido desde pequenas; que não existe instinto maternal, mas sim a continuação do serviço de maternidade obrigatória; que nosso shortinho de verão não é um convite para nos violentarem, mas o estupro e sua ameaça são um dispositivo de controle da nossa sexualidade; que o aborto é criminalizado apenas quando é voluntário, porque nossos corpos estão sujeitos a expropriação do capitalismo patriarcal para serem fábricas-parideiras; que a violência é a pedagogia da crueldade.

Hoje, as mulheres na Argentina param e se mobilizam. Embora, a maioria dos sindicatos — liderados por homens que nasceram com testículos e pênis, que são medidos todos os dias — não tenha oferecido proteção sindical para as trabalhadoras filiadas. Enquanto isso o atual governo, conservador e liberal ao mesmo tempo, toma chá com essas lideranças burocráticas e convoca uma reunião pela “paz social”, ignorando, como tantos outros governos, que a paz não existe quando mais da metade da população está submetida a violência.

E, se você acha que nada disso é verdade, que as “feminazis” — termo horrível, porque o feminismo nunca matou ninguém, enquanto o machismo nos mata todos os dias — que são exageradas, eu convido você a fazer uma lista das coisas que fazem (e fizeram) as mulheres e homens de sua família, suas amigas e amigos, vizinhas e vizinhos. E, compare quem tem a maior porcentagem de tarefas para realizar todos os dias, quem fazia você desfrutar de uma boa refeição, de ter roupas limpas, quem escovava seus dentes pela manhã e à noite antes de dormir em uma cama de folhas macias.

E, quando você terminar essa lista, você vai perguntar a suas amigas, parentes e vizinhas se elas já se sentiram subestimadas, abusadas, inúteis, agredidas, violentadas, insultadas, tratadas como lixo pelo fato de se identificarem como mulheres. E, pense quantas vezes você já apoiou comentários ofensivos sobre a prostituta do bairro; sobre a ex-mulher de um colega de trabalho que é uma mãe tão ruim por pedir para trocar a data do dia de visita, mas que há anos não cobra pensão alimentícia; sobre a saia da famosa do momento; sobre sua prima que não quer ser mãe. Pense sobre o uso da palavra “viado” como insulto e o pensamento de que “isso aí é falta de sexo” porque uma mulher discordou de você.

E reflita. Porque a transformação não depende de uma, duas, centenas de milhares de mulheres. Exige o comprometimento de cada pessoa para sermos multiplicadoras e multiplicadores da mudança que queremos gerar.

Autora

Florencia Maffeo é socióloga feminista, torta e abortera, mulher cis.

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