Texto de Alice Girassol para as Blogueiras Feministas.
Alerta: esse texto é um relato que pode ser gatilho para lembranças de abuso e violência. Também há spoilers da série 13 Reasons Why da Netflix.
Até hoje me lembro da mão dele pressionando a minha nuca, do corpo dele pesando com força contra mim, da voz dele me dizendo “fica quietinha”. Ali, eu não podia me mover. Fiquei imóvel sem acreditar no que estava acontecendo. Quando acabou, ele se levantou rapidamente e saiu batendo a porta do meu apartamento. Não falou mais nada.
Eu não chorei. Eu nada sentia. Na mesma posição, eu permaneci durante o resto da noite.
Recentemente, quando assisti à série 13 Reasons Why, revivi no estupro de Hannah o que tinha acontecido comigo. Um ser inerte, que não resiste à violência, apenas se rende e torce para que tudo acabe logo.
Como disse a atriz Mônica Martelli em entrevista a Pedro Bial: nós ainda acreditamos que estupro é algo que ocorre em um beco escuro com uma arma apontada para a nossa cabeça.
Estupradores são homens comuns que convivem conosco diariamente, mas não sabemos. Ou não reconhecemos, pois acreditamos que estes criminosos têm cara de psicopata. Não existe homem com “cara de estuprador”, assim como não existe mulher com “cara de quem já foi estuprada”. Criminosos e vítimas são pessoas do nosso meio social, são nossos vizinhos, amigos, parentes, colegas de trabalho, pessoas comuns assim como nós somos.
Nos meses subsequentes ao estupro, tive severa queda de cabelo, acne, tosse constante devido ao refluxo, a ânsia de vômito que me dava cada vez que eu relembrava. Fechava os olhos e podia sentir novamente a dor em meu corpo. Até hoje posso. Além disso, a minha libido foi reduzida a zero. Eu me olhava no espelho e não reconhecia a mulher bonita e atraente que eu era.
Eu era um nada.
O estrago psicológico foi ainda pior. Tive depressão profunda, mas demorei a buscar ajuda. Achei que simplesmente eu deveria seguir com a minha vida e que tudo passaria. Ledo engano. Toda a dor que eu guardava do abuso sexual infantil veio à tona. Eu me transformei em uma persona de atitudes, sentimentos e pensamentos negativos. Ódio, raiva, revolta, desejo de matar, desejo de me matar, não há nenhum sentimento neste mundo que eu não tenha sentido. Tudo isso alternado com momentos de choro, tristeza, angústia, minha vida era só lágrimas. Ninguém que não tenha vivenciado a situação é capaz de compreender.
O estuprador era meu vizinho de porta. Além do crime, passei dois anos ouvindo-o assobiar no corredor quando chegava, dando festas e altas gargalhadas, fazendo farra e curtindo com os amigos. Sem falar das vezes que o encontrei pelas áreas comuns do prédio. Ali estava a personificação da impunidade.
Mas você vai me perguntar:
Por que você não denunciou então? Como você quer que alguém acredite que foi estuprada se não foi fazer exame de corpo de delito? Então você diz que estava incomodada com a presença dele, mas não procurou uma delegacia? Você está reclamando da impunidade se não se deu ao trabalho de buscar a justiça?
Parece tudo tão fácil…
E você vai rebater:
Claro que é fácil! Quantas mulheres são estupradas todos os dias e fazem a denúncia?
Parece realmente fácil, em meio a toda confusão mental, relatar os fatos de maneira coerente, detalhada e convincente. Pessoas que vão nos ouvir já esperando algum momento de contradição, que vão julgar se estamos chorando ou não, que querem escutar uma narrativa segura, contada na ordem cronológica dos fatos. Que vão nos perguntar a roupa que vestíamos, se tínhamos bebido. Que vão insinuar que queríamos o estupro, pois estávamos sozinhas com um homem, que além de tudo, era meu conhecido e tinha sido meu quase namorado.
Somos compreensivos quando alguém sofre um acidente de carro e fica com a mente confusa, perde a memória, diz não lembrar direito como tudo ocorreu. “Ele sofre de estresse pós-traumático, precisamos ter empatia.” No entanto, exigimos de uma vítima de estupro coerência, detalhes, toda a cena narrada com precisão.
O medo dos profissionais da justiça é tão grande quanto o medo de um estuprador.
Revivi em minha mente aquelas cenas inúmeras vezes. No fundo do meu coração, sinto que não fui a primeira vítima dele. Certamente, não serei a última. É meu dever fazer esse estuprador parar. Eu me fortaleço a cada dia para conseguir fazer a denúncia. Sinto que não sou mais vítima, sou uma sobrevivente.
Não mais choro nem quero morrer. A duras penas, eu me reergui, busquei ajuda e retomei o meu equilíbrio. Redescobri a felicidade, refiz a minha vida, e ninguém do meu convívio desconfia que sofri um crime hediondo.
Sou uma sobrevivente.
Assim como eu, quantas sobreviventes eu conheço e não desconfio do que aconteceu com elas? Que algum dia no passado, elas também estiveram em um lugar sombrio desejando a própria morte para anestesiar a dor?
Reflito e releio este texto para que fique organizado. Ainda assim, vejo parágrafos desconectados. As emoções que surgem com este assunto não me ajudam a fazer a coesão textual. Então, eu me pergunto como devo soar ao relatar verbalmente um crime hediondo chamado estupro.
Admiro as mulheres que buscam a justiça imediatamente após um estupro. Estas são as verdadeiras mulheres fortes.
Um dia, eu chegarei lá!
Autora
Alice Girassol sobreviveu a três anos de abuso sexual na infância, uma tentativa de suicídio e um estupro na vida adulta. Curou-se dos males profundos e hoje é uma mulher feliz e realizada. Escreve em seu blog no Medium.
Créditos da imagem: Foto de nosha no Flickr em CC, alguns direitos reservados.