Como eu me descobri uma mulher lésbica? Na verdade, como eu me descobri uma mulher não-heterossexual?

Texto de Lorena Varão para as Blogueiras Feministas.

13 de Dezembro, Recife-PE.

Fiz terapia por uns três anos. Na verdade, acho que ainda faço. Uma das técnicas que minha terapeuta estimulava era o uso da escrita. Geralmente, ela me indicava uns filmes e eu fazia uma resenha ou escrevia livremente sobre qualquer coisa que eu estivesse sentindo. O esquema era: eu escrevia e enviava tudo por e-mail. Era libertador. Nunca liguei muito pra gramática, nunca liguei muito pra textos muito densos e prolixos, apenas escrevia. Perdi isso nos últimos dois anos.

Ocorre que 2016 e 2017 foram anos extremamente intensos pra mim. Muitas coisas aconteceram comigo e com pessoas próximas. Fui guardando tudo isso e elaborando textos na minha cabeça, mas os mantive em silêncio.

Essa semana fui questionada sobre o meu processo de “saída do armário”. Como eu me descobri uma mulher lésbica? Na verdade, como eu me descobri uma mulher não-heterossexual? A tão temida “saída do armário” sempre é um tema recorrente em todas as rodas ou papos sobre a vivência LGBT. Eis que resolvi escrever sobre o assunto.

A intenção não é formular um texto de formação política ou coisa do tipo, mas tão somente registrar minha vivência enquanto mulher lésbica. Sempre vejo esses textos nos blogs feministas e penso: poxa, eu poderia ter escrito isso! Então, o objetivo é simplesmente socializar essa vivência e aproveitar a coragem que duas garrafas de vinho me deram.

Assim sendo (adoro essa expressão, não sei porquê!), tudo começou quando eu tava na alfabetização. Teresina, Piauí. Bairro Bela Vista II, zona Sul. Eu era extremamente apaixonada por uma professora minha. Tinhamos aula dela umas duas vezes por semana. Nesses dias, eu sempre acordava bem cedo, me arrumava mais, me perfumava, ficava extremamente ansiosa. Sempre que a via meu coração disparava loucamente! Acho que foi minha primeira paixão de fato. Não recordo minha idade na época, mas tudo era tão inocente que não conseguia dimensionar aquilo que eu sentia. Era uma admiração, uma vontade de tá perto, uma necessidade de que ela me enxergasse e me quisesse por perto também… Pra vocês terem noção, eu cheguei a entrar na igreja dela só pra poder vê-la todos os domingos no culto.

Anos se passaram e observei que eu sentia um interesse diferente por mulheres. Sempre rolava um friozinho na barriga, num tem? Eu sempre me senti diferente das outras meninas que eu convivia, na real. Não sei o que pesava mais, o fato dos meninos nunca me notarem ou o fato de que eu não os achava interessantes. Tive muitas fantasias com mulheres, mas com o avançar da idade eu passei a negar esse desejo o máximo que pude. Às vezes eu assistia a cenas de filmes e sentia nojo.

Na 6ª série me apaixonei por uma amiga. Hoje eu consigo reconhecer isso, mas naquela época era tudo muito confuso. Éramos muito ligadas e eu tinha uma admiração enorme por ela. Eu não sabia se o clima que eu imaginava que rolava entre nós duas era real ou coisa da minha cabeça. Muitas vezes eu passava horas repassando cenas e cenas, tentando identificar sinais. Resultado? Eu simplesmente deixei de falar com ela do nada. Eu sentia um nojo tão grande de mim mesma e de tudo aquilo que cortei todo e qualquer contato com ela sem dar nenhuma explicação. Era desejo e eu simplesmente reprimi. Tinha uns 11 anos de idade quando isso aconteceu.

Na 7ª série comecei a namorar meu melhor amigo. História pública e notória. Sobre isso só tenho algo a declarar: foi real, foi intenso e foi extremamente importante pra mim. Foram nove anos de relacionamento e o desejo que eu sentia por ele não suplantava o desejo que eu sentia por amigas ou outras mulheres. Inclusive, conversávamos muito sobre isso. Ainda hoje revisito esse relacionamento e me questiono: sou lésbica ou bissexual? Ainda não sei a resposta e NÃO SOU OBRIGADA A SABER. Importante deixar isso bem evidente: as pessoas não são máquinas e muito menos podem ser automaticamente enquadradas em categorias ou classificações, mas isso fica pra outro possível texto.

O fato é que esse relacionamento com o “boy” durou uns 9 anos. No meio disso, terminamos e depois retornamos. Durante o término eu ME JOGUEI PESADO. Comecei a ficar com mulheres. Eu já estava na universidade, tinha entrado em contato com o Cajuína (Assessoria Jurídica Popular da UFPI) e me deparei com o debate feminista e muitos outros. Foi louco, confesso. Foi um período em que não dormia tranquilamente. Passava horas pensando e pensando e pensando e pensando. Entrei em um processo de desconstrução violento. Como uma boa ariana que sou eu lido de uma maneira muito intensa com todos os meus processos ou eu ligo o “foda-se” ou eu me jogo de cabeça completamente.

Decidi, então, fazer parte do Cajuína um grupo composto, na época, só por mulheres incríveis e maravilhosas. Óbvio que me apaixonei loucamente por uma delas, talvez até por duas delas haha. Gente, foi UMA PAIXÃO DOIDA, sério. E eu não compreendia. Era uma angústia diária. Detalhe que todas as meninas do grupo namoravam caras, inclusive eu, e reivindicavam a heterossexualidade.

Muita culpa, muita angústia, muito medo, muita vontade de não existir rolaram. Resumindo, acabei vivenciando uma relação com outra mulher um tempo depois. Aqui, eu preciso dizer algumas coisas que senti, que são minhas, mas que outras meninas podem se identificar ou não. Gente, não somos construídas pra nos relacionarmos umas com as outras. Todas e todos crescemos sob a heterossexualidade compulsória, ou seja, TEMOS, necessariamente, que nos relacionar com homens, com pessoas do sexo oposto. O “correto” é pênis e vagina, sempre. Então, a primeira vez que você transa com uma mulher… Isso mesmo! TRANSA COM UMA MULHER (nós transamos horrores, tá?)! a primeira vez que você transa com uma mulher é muito confuso, pelo menos pra mim foi.

A primeira vez em que beijei uma mulher foi intenso. Estou aqui tentando não romantizar nada, mas, assim, foi massa. A pegação é outra energia, outra dinâmica, outra realidade. Eu sabia que queria aquilo. O desejo vibrava por todo meu corpo, pulsava mesmo. Eu tinha espasmos musculares de tanto tesão reprimido. No entanto, contudo, todavia, durante o sexo eu simplesmente não sabia muito o que fazer, afinal, fazer sexo oral em um pênis se aprende em qualquer canal de televisão, na internet, as pessoas falam sobre isso toda hora. Sexo oral em vagina? Ouxe! Muitas pessoas heterossexuais nem sabem o que é isso. Os caras se negam a fazer, muitas vezes. Então, como diabos se aprende a “chupar uma buceta”, minhas deusas?!

Nas primeiras transas eu não conseguia fazer sexo oral, eu não sabia o que fazer além de beijar e chupar o que eu podia e achava que podia. Era um pouco frustrante. E o fato de você “ter o mesmo corpo” não ajuda, necessariamente. Enquanto os meninos se masturbam uns com os outros, comparam o tamanho dos seus pênis, etc. Nós, mulheres, estamos brincando de casinha ou cuidando de filhos fictícios. Diante disso, é muito comum que não saibamos o que fazer ou como agir durante o sexo com uma mulher, mas podemos aprender lindamente, viu.

Foi na universidade que tive a possibilidade de me reconhecer enquanto uma mulher que curtia mulheres. Nunca fui muito de ficar com muitas pessoas (uma pena isso!), sempre namorei (tem seu lado massa!) então minhas vivências foram dentro de relacionamentos estáveis, em sua maioria. Foram neles que eu consegui me desenvolver no sexo com outra mulher. Muitas vezes a gente precisa de tempo pra se entregar e romper as amarras que estão colocadas no nosso corpo. Confesso que, até hoje, ainda tenho muitas delas.

No nosso imaginário sempre tem a presença do falo. Algo tem que penetrar ou ser penetrado. E isso gera uma pressão enorme e violenta. Uma vez me disseram, depois do sexo, que foi muito massa, mas que tinha sido uma pena não termos “finalizado”. Fiquei me questionando… depois entendi que não “finalizamos” porque ninguém penetrou ninguém. Tempos depois conversei com algumas meninas e pelos relatos das experiências sexuais delas com caras, geralmente, não rola muita preliminar. É como se o sexo fosse a penetração em si e é isso. Ou seja, o sexo entre duas mulheres, quando não rola penetração, não é sexo. Na melhor das hipóteses seria uma simples preliminar. Mas aqui fica outro gancho pra outro texto.

Sim, mas e a saída do armário, Lorena?

Gente, não existe UMA saída do armário. Saímos do armário a vida toda e a todo instante, é cansativo, violento, mas é a realidade.

A minha primeira saída “oficial” do armário foi pra minha mãe. Como toda boa ariana, sou o poço da intensidade, então pra mim não tem meio termo, muitas vezes. Simplesmente eu me apaixonei por uma mina (minha primeira namorada!), tínhamos ficado umas duas ou três vezes daí eu peguei o embalo e joguei bem “no meio dos peito” da mamãe: “fia, eu gosto de mulheres, estou namorando com uma (mentiiiiiira!rs) e quero trazê-la em casa”.

Nunca vou esquecer a expressão da minha mãe nesse dia. Ela tinha acabado de sair do banho, estava enrolada em uma toalha na cozinha. Puxei o assunto e joguei de uma vez. Ela ficou naquela de que era só uma fase, mas sempre me respeitou muito e nunca me impediu de vivenciar nada. Foi assim que iniciei minha primeira relação com uma mulher. Foi a minha primeira saída do armário. Nessa época, só minha família e meus amigos da militância e do curso sabiam da minha orientação sexual.

Foram 5 anos de relacionamento, quase. Foi a primeira vez que eu vivi e identifiquei a violência lesbofóbica. Foi uma dor, uma dor, uma dor que eu não consigo descrever aqui e agora. Foi nesse relacionamento que eu tive que sair do armário várias vezes. Saí do armário no estágio. Saí do armário para os pais dos meus amigos mais próximos. Saí do armário dolorosas vezes.

No estágio foi bem simbólico. Eu trabalhava no centro da cidade e sempre me encontrava com minha ex-companheira na parada de ônibus. Um certo dia, uma das funcionárias que trabalhava comigo nos viu na parada juntas. Percebi, mas me fiz de doida. No dia seguinte, ela estava na recepção conversando com outra funcionária. Minha sala tinha a porta pra recepção e ela simplesmente no meio do expediente perguntou: “Lorena, aquela menina lá da parada é o que tua?”. Eu percebi a intencionalidade daquela pergunta. Eu senti no corpo qual era a intenção da pergunta. Ela queria me constranger pra depois sair por aí dizendo: “nossa! Todo mundo sabe que a Lorena é sapatão. Não sei porque ela nega isso!”. Já ouvi muita gente falar isso. Mas eu entendo que o privilégio heterossexual não as deixa ter empatia.

Depois que ela perguntou rolou uma pausa dramática.

Minha pressão caiu. Meu corpo gelou. Meu coração disparou. Fiquei extremamente ansiosa, mas pensei: não tenho como fugir dessa! Logo, respondi: “é minha namorada”. Parece que o tempo parou nesse momento. Eu sustentei o carão e assumi minha lesbianidade no trampo. Foi fácil? De forma alguma, mas eu senti que devia e podia. Eu tinha privilégios pra comprar essa briga. Minha família sabia, meus amigos sabiam, eu era uma universitária, morava bem, tinha conforto, na medida do possível. Eu precisava me impor naquele momento.

Uma outra saída do armário muito importante foi com a família de um grande amigo meu. Gente, eu sempre fui uma amiga querida por todos os pais das minhas amigas e amigos. Aquela que todo mundo queria adotar. Eu vivia na casa dos meus amigos e chamava seus pais de “tios”, então morria de medo que me rejeitassem por causa da minha orientação sexual.

Certa vez, eu estava no meu bairro esperando um ônibus pra ir à casa da minha namorada, na época. Meu amigo e sua família passaram na frente e ofereceram carona. Até aí tudo bem, mas eis que meu amigo me pergunta pra onde vou e digo o bairro. Ele diz: “ahhh, o bairro da tua NAMORADA, né?”.

Silêncio. Congela o tempo.

Eu senti as lágrimas brotarem dos meus olhos, mas as segurei. Mais uma vez, meu corpo gelou e o coração disparou. Eu não sabia o que fazer ou dizer ou negar. Não sabia. Foram os minutos mais longos da minha vida até agora. No fim, os meus “tios” foram de boas e ficou tudo tranquilo, mas eu me senti extremamente frágil naquele momento. Minha vontade foi de descer do carro em movimento por achar que o choque do meu corpo com o asfalto doeria menos e seria mais justificável do que o fato de estar namorando uma mulher.

Como eu mencionei anteriormente, eu sempre fui muito querida nos espaços que me coloquei, então a rejeição era uma coisa que não passava pela minha cabeça. No entanto, não existe momento mais doloroso quando a família da pessoa que você se relaciona, e que não sabe ou FINGE NÃO SABER (invisibiliza, na moral), descobre. Igreja, psicólogo e outras saídas foram apontadas. A dor? Olhe, a dor rasga a gente. Mas não pretendo aprofundar isso porque não é uma história só minha e eu ainda estou ressignificando tudo isso.

Qual a minha intenção em relatar isso tudo? Na real, nenhuma especificamente. Eu só quero poder não calar minhas vivências e, portanto, existir pra poder resistir. Muitas amigas ou pessoas próximas tem vivenciado processos dolorosos de dúvidas quanto à orientação sexual. Eu só queria dizer que não existe fórmula, não existe facilidade e não existe saída sem a saída, entendem?

Cada família tem sua dinâmica, cada pessoa tem suas vivências, portanto a gente tem que aprender a avaliar os contextos em que estamos inseridas/os. Temos que sopesar nossa segurança sim. Temos que resguardar nossa saúde mental. Temos que aprender a carregar um peso que a sociedade capitalista opressora nos impõe e tudo isso é muito difícil.

Eu não tenho muitas respostas ainda. Encontrei algumas pelo meu caminho, mas que talvez não sirvam pra todo mundo. Eu só achei que negar meus desejos era violento demais. Achei que me privar de sentir desejo por pessoas do mesmo sexo era me privar de quem eu era.

Não quero dar uma de “Augusto Cury”, mas nós, mulheres lésbicas, bissexuais, transexuais, etc, temos que criar mecanismos pra vivenciar nossas afetividades. Enfrentar a família muitas vezes é complicado pra muita gente, contar no trabalho é algo impossível, mas socializar nossos desejos e vivências umas com as outras talvez seja uma forma de construir um espaço nosso em que não precisemos sair ou chutar a porta do armário, compulsoriamente. Um espaço em que possamos ser. Por isso, acredito muito na força e na potencialidade dos espaços auto-organizados, sejam eles quais forem.

Hoje eu moro em João Pessoa, Paraíba, mas sempre que vou pra minha terrinha calorosa invento um churrasco feminista (tem opção vegetariana, tá!), um cine feminista, chamo as amigas, as amigas das amigas, minha mãe entra no meio e minha sobrinha também. Conversamos sobre tudo. Aproveitamos pra beber, comer e nos amar. Isso é autocuidado e é mais outro ponto pra outro texto rs.

No mais, a opção de sair do armário sempre vai doer, infelizmente. Vai doer repetidas vezes. A sociedade capitalista não nos permite viver sem dores. Mas a dor nos fortalece, muitas vezes. Hoje, eu sei que tem muita gente na minha vizinhança, no meu local de estudo, nos espaços em que convivo que não tem coragem de questionar as minhas decisões. Eu sei que muita gente deve achar um monte de coisa de mim, muita gente acha que devo ser mais discreta, mas, meus amores, eu não nasci pra cheirar a naftalina.
Não tem armário que me caiba. Não tem armário que nos caiba.

Autora

Lorena Varão é uam piauiense de 27 anos, negra, lésbica e feminista. Mestranda em Direito. Uma ariana apaixonada que adora dançar, comer e viajar. Sonha com o dia em que nós, mulheres, sejamos livres.

Créditos da imagem: Cena do documentário #EuSouAPróxima. Feito pela Coletiva Luana Barbosa, mostra nove casos de morte, contados pelas mulheres que participam da Coletiva, como se elas fossem as próprias vítimas assassinadas por lesbofobia.