Ela é sapatão…

Texto de Tamires Marinho para as Blogueiras Feministas.

De repente… onde está a garota talentosa? A aluna dedicada? A boa atleta? A menina inteligente? A filha carinhosa? A mulher bem-sucedida? Simplesmente, se vincula toda uma existência, ignorando todo o resto, a uma mera condição sexual. O que importa, não é mesmo? Ela é sapatão.

Enquanto produzia esse texto, numa conversa de boteco escutei um relato de uma amiga bem próxima, que elucida bem tudo que foi dissertado acima. Ela, uma moça muito responsável, profissional e competente, entrara numa nova empresa, devido a indicação de um parente. Tudo corria bem, mas sem muitos porquês e com desculpas esfarrapadas seu chefe a dispensou três meses depois. Ok, coisas da vida, não é mesmo? Deve ter sido por causa da crise. Na na ni na não, descobriu-se posteriormente pelo mesmo parente que a havia indicado, que o ex-chefe havia descoberto sua orientação sexual e que era esse o verdadeiro motivo de sua demissão.

Em palavras duras e diretas, não importa o quão gentil, empática, simpática, bondosa, uma mulher gay seja. No final de cada elogio, existira um… mas… “Que desperdício a moça é sapatão”… Meus amigos me falaram isso, meus pais me falaram isso, desconhecidos vivem me falando isso. Mais clichê? Impossível.

É ainda mais comum ouvir que mulheres lésbicas ou bissexuais estão passando apenas por uma fase, que quando chegarem numa certa idade vão sentir vontade de casar e ser mães, como qualquer mulher normal. Como se mulheres não pudessem ser felizes com suas companheiras, ou como se não ter um homem em sua vida fizesse de alguma mulher um ser incompleto, ou como se não pudessem ter filhos sendo lésbicas.

Você já ouviu falar de estupro corretivo? Já ouviu dizer que sua orientação sexual depende apenas de um “homem te pegar de jeito”? Dentro de casa estamos expostas ao controle da nossa sexualidade. Uma mulher lésbica sofre cárcere privado para que ela não possa se relacionar, a violência sexual de irmãos, pais ou outros homens para que ela “aprenda” a gostar de um pênis, isso é o estupro corretivo.

Numa sociedade estabelecida e enraizada em bases patriarcais, não gostar do homem, o ídolo, o sexo forte, é um crime contra os valores sociais da tradicional família brasileira. A sociedade vive produzindo e reproduzindo normas de conduta que ditam qual o papel social da mulher. Quando uma mulher desafia esse papel que lhe é imposto, como é o caso das lésbicas e bis, ao transgredirem a heteronormatividade, acabam sofrendo uma violência “diluída” que vem de diversas frentes.

Para muitas pessoas é inaceitável que uma mulher possa sentir prazer em uma relação sexual onde não exista um homem. Acreditam que uma lésbica só não gosta de homem porque nunca encontrou um que fosse bom o bastante na cama, isso por si só já é contraditório, uma vez que 55,6% das mulheres brasileiras — presumo que a grande maioria heterossexuais — tem dificuldades para ter um orgasmo.

Para muitas pessoas é pouco natural aceitar que exista relação sexual sem penetração, então é estranho aceitar que uma mulher seja completa ou feliz sexualmente com outra mulher. Mas eu me orgulho em avisar que mulheres sentem prazer sem penetração, sua estimulação do prazer sexual está muito além do canal vaginal, temos o clitóris, um órgão feminino que só serve para dar prazer, e que não está no canal vaginal. O clitóris é o único órgão do corpo humano dedicado inteiramente ao prazer. Ele é bem maior que aquilo que conseguimos ver, projetando-se por dentro do ventre feminino, ao redor do canal vaginal – comprimindo a vagina quando alcança a ereção. Tem de 6 a 8 mil fibras nervosas e por isso, altíssima sensibilidade, por isso, exige delicadeza no manuseio. Quem poderia entender melhor de clitóris do que quem tem um? Não é mesmo!?

Quem nos disse que a problemática do homem é posta de novo em questão sempre que o contrato original entre o mundo e o ser é rompido? De que modo ser o que sou impede você de ser o que é? Você pode até acreditar que não há mais espaços em sua vida para a discriminação. Ninguém admite que discrimina, mas faz isso sim e depois tira o seu da reta. Coisas de um ego educado. E tudo isso parece me dar respostas que não consigo entender. Pode-se argumentar que o encantamento e o respeito vêm se impondo nas últimas décadas. Mas, ainda existe tanto a se caminhar.

Não precisa repetir de novo seus nãos, poréns, entretantos, todavias. Eles não são mais necessários. Conhecemos as suas respostas de cor: elas estão encravadas em nossas carnes como lâminas afiadas que o atirador de facas lançou a esmo. A verdade é que você, machista e lesbofóbico, não se conforma em não ver nas lésbicas a mulher que será submissa sexual e socialmente. Mas ser sapata, sapatão, sapatona, 44… Mesmo diante dos dolorosos passos de discriminação, indiferença familiar e auto aceitação é motivo de orgulho.

Pois, ser lésbica é ser de resistência, de empoderamento, ser de luta. Ser lésbica é ser dona da sua sexualidade, é transgredir a obrigação de transar para reproduzir ou de servir de playground para macho. É escolher ser dona do seu corpo. Escolher gozar! E gozar é resistência, gozar é empoderamento.

Autora

Tamires Marinho é apaixonada pelo comportamento humano e pelos conhecimentos empíricos da vida. Clarice Lispector é meu lado escritora, Darcy Ribeiro me faz socióloga, Beauvoir é minha militância. Escritora amadora, psicóloga mal formada e historiadora em desenvolvimento. Me orgulho, defendo tudo que sou e acima de tudo: Sou mulher!

Créditos da imagem: “O enterro das minhas Ex”, da autora e ilustradora francesa Anne-Charlotte Gautier, graphic novel sobre uma mulher lésbica publicada em 2015 pela editora francesa 6 Pieds Sous Terre e que ganhou uma edição brasileira em 2016 pela editora Nemo.