Marcia Tiburi e o feminismo ético-político

Texto de Bia Cardoso para as Blogueiras Feministas.

Outro dia, uma amiga me pediu indicações de livros feministas para presentear uma adolescente de 15 anos. Dei uma olhada em minha prateleira e a grande maioria são bem acadêmicos. Avistei Como Ser Mulher de Caitlin Moran e Má Feminista de Roxane Gay. Mas ainda não era o que queria. Entrei na internet e fuçando entre alguns posts com indicações de livros feministas, vi que Marcia Tiburi tinha lançado um novo livro. Passei para a amiga alguns nomes e disse que esse da Marcia eu não conhecia, mas ia procurar. A melhor notícia foi quando a editora topou enviar 1 exemplar para fazer essa resenha.

Feminismo em comum: para todas, todes e todos¹, é um bom livro para quem quer iniciar leituras refletindo sobre o que é o feminismo. Em 17 capítulos —- bem curtos pois o livro tem apenas 125 páginas — a filósofa Marcia Tiburi reflete sobre questões fundamentais para o feminismo atual, como: trabalho, autocrítica, solidão, diálogo, escuta, lugar de fala, identidade, violência, política. Não há um aprofundamento, vários temas são colocados apenas para pontuar a necessidade de serem mais discutidos, como a prostituição. É quase um glossário crítico de temas centrais do feminismo com uma linguagem simples. Como diz a orelha:

Com este livro, Marcia Tiburi nos convida a repensar essas estruturas e a levar o feminismo muito a sério, para além de modismos e discursos prontos. Espera-se que, ao criticar e repensar o movimento — com linguagem acessível tanto a iniciantes quando aos mais entendidos do assunto — Feminismo em comum seja capaz de melhorar nosso modo de ver e de inventar a vida.

Para quem já está na labuta do feminismo há algum tempo, o livro é um agradável passeio que pode nos lembrar de temas que devemos falar mais, como o fato do feminismo não ser uma ideologia única. E, é também um importante acontecimento pois marca a volta da editora feminista Rosa dos Tempos, dentro do grupo editorial Record. Citando o release enviado pela editora:

A obra marca a retomada do selo feminista Rosa dos Tempos, criado por Rose Marie Muraro e Ruth Escobar na década de 1990. A iniciativa do Grupo Editorial Record reúne um coletivo de editoras, gerentes e a vice-presidente da casa, Roberta Machado.

“A Rosa dos Tempos marcou época, foi uma editora importantíssima para a difusão do pensamento feminista internacional e nacional. Além de tudo, a feminista Rose Marie Muraro é um ícone entre nós. E a volta da Rosa dos Tempos, criada por ela, está sendo saudada com alegria por leitoras e leitores de todo o país. O coletivo de editoras que está à frente dessa reinauguração é algo que combina muito com as práticas feministas.”

Eu só fui conhecer o feminismo com uns 23 anos, quando fazia faculdade de pedagogia em 2004. Minhas primeiras buscas por livros feministas foram em sebos e os livros de Rose Marie Muraro, publicados pela Rosa dos Tempos, foram alguns dos primeiros com os quais tive contato. ‘Seis meses em que fui homem’ e ‘Memórias de uma mulher impossível’, foram bem importantes nesse início. Portanto, é com muita alegria que vejo essa conexão entre as feministas de ontem e as de hoje. Perpetuando esse desejo de que o feminismo continue crescendo e florescendo. Como diz Marcia Tiburi:

O feminismo cresce sustentado em discursos e práticas de várias gerações. O feminismo está aí para ajudar as pessoas a se perguntarem sobre os jogos de poder envolvidos em sua própria vida. (pg. 29)

Outro ponto positivo de Feminismo em Comum é que ele traz referências bem recentes como Calibã e a Bruxa² de Silvia Federici, Dororidade³ de Vilma Piedade. Além de citar Judith Butler, Audre Lorde e Emma Goldman, entre outras e outros pensadores. Portanto, esse livro não se trata de um manual e nem de uma compilação de textos publicados em colunas na mídia, mas sim um exercício de refletir sobre o feminismo e pensar em como podemos concretizá-lo.

Minhas partes favoritas são justamente quando Marcia Tiburi nos lembra que o feminismo só existe porque é preciso questionar o patriarcado. É um movimento político e social que buscar descontruir, pois isso não há uma tábua com os mandamentos do feminismo, por isso não há uma verdade absoluta, nem deve haver uma identidade natural:

De fato, não podemos reduzir o feminismo à discussão de gênero e sexualidade sem uma ligação direta com a questão das classes sociais — também a da raça e, acrescento eu, a da plasticidade, no qual se inserem as questões das chamadas “deficiências”, das aparências e da idade, que afetam várias minorias. Do mesmo modo, todas as lutas que envolvem os marcadores de opressão, quando não estão atentas ao problema de gênero que reproduz um sistema conservador, não conseguem avançar na transformação social. (pg.28).

É visível que brigamos e discutimos muito entre nós, feministas. As opiniões e desentendimentos são diversas, inúmeras, mas para mim não há como ser de outra forma porque estamos em constante disputa política. É um pensamento e uma proposta viva em nossas mãos, divergimos justamente na maneira como podemos concretizá-la. Ao mesmo tempo, lutamos contra um sistema opressor em que estamos inseridas, nos fazendo rever a cada contexto nosso lugar de fala.

O que Marcia Tiburi propõe para lidar com essas questões é aprofundar o caráter político do feminismo por meio da ética, do diálogo e da escuta:

A moral é aquilo que está dado como se fosse verdade. A ética é a chance de inventarmos nós mesmos e um outro mundo necessariamente a partir do pensamento crítico. (pg. 91)

Penso no ideal de um Estado laico, no qual o aborto seja totalmente legalizado, no qual as pessoas não sejam maltratadas por sua condição física ou por seus desejos. Penso em uma sociedade capaz de ajudar, educar e cuidar de cada um de seus cidadãos. Uma sociedade de direitos fundamentais. Um Estado para o povo, e não para a elite privilegiada e autoritária. Penso nisso tudo e não vejo caminho senão começar pelo feminismo, que nos ajuda a ver melhor e mudar o rumo delirante do patriarcado que sempre quis apenas nos usar e devorar e que sempre impediu o diálogo por medo da sua potência transformadora radical. (pg. 124)

Cada espaço que conquistamos é feito com dificuldade e luta, mas justamente por isso não podemos agir como o patriarcado e acreditar num conjunto de verdades absolutas. Cada vez que uma mulher se declara feminista, cada vez que um novo coletivo feminista surge, uma nova possibilidade de feminismo está lançada. É isso que temos em comum, o desejo de mudança para todas, todes e todos.

Referências:

¹TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

²FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. São Paulo: Elefante, 2017.

³PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.